Análise | Religião Violência e Crimes

Em nome do mal: os crimes sexuais de João de Deus

Em 2018, o Brasil e o mundo foram surpreendidos por inúmeras denúncias de crimes sexuais que teriam sido cometidos pelo famoso médium João de Deus. Os relatos se constituíram como um acontecimento que se soma a uma série de outroscom um só objetivo: acabar com o abuso de mulheres.

Créditos: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A cidade de Abadiânia, em Goiás, é conhecida por ser uma das paradas obrigatórias do chamado “turismo espiritual”. Todos os anos, pessoas do Brasil e do exterior visitam o pacato município. O motivo? As cirurgias e curas espirituais realizadas na Casa de Dom Inácio de Loyola, pelo médium João Teixeira de Faria – o João de Deus.

Mas, em dezembro de 2018, a cidade figurou na cena pública por um motivo diferente. Relatos de inúmeras brasileiras e estrangeiras acusavam o médium de violência sexual e ameaças durante as sessões. Até mesmo a filha de João de Deus, Dalva Teixeira, revelou que foi abusada e que chegou a ficar grávida do próprio pai.

A violência sexual é, por si só, uma tipologia de crime capaz de chocar toda uma coletividade seja pela covardia do autor, pela finalidade do ato ou pelas graves marcas físicas e psicológicas deixadas na vítima. Quando o infrator se apropria de uma crença religiosa e de vítimas fragilizadas em busca de cura, o fato parece alcançar um grau ainda maior de perversidade.

Esse acontecimento se soma a uma série de outros que, felizmente, têm tentado tirar das sombras o fantasma do crime sexual contra a mulher. As campanhas “Chega de fiu fiu”, “Meu primeiro assédio”, “ “#MeToo”, entre outras, com certeza preparam o terreno para que as vítimas do médium brasileiro se sentissem encorajadas a denunciar.

Mesmo que o fato tenha causado grande revolta, Quéré (2005) nos lembra que o processo de compreensão de um acontecimento varia em função da experiência vivenciadapelo público afetado. O modo como somos impactados por um evento não é uníssono. Muito menos a resposta que damos a ele.

Por isso mesmo, após as denúncias, movimentos distintos envolveram a figura de João de Deus.  O primeiro, e mais óbvio, foi a imediata repulsa aos abusos, a cobrança pelo esclarecimento dos fatos e o surgimento de novas denúncias após a revelação da dupla vida de João de Deus.

Por outro lado, houve quem duvidasse da veracidade dos relatos. Em Abadiânia, um ato chegou a ser realizado em apoio ao médium preso e pela manutenção da Casa de Dom Inácio de Loyola.

Além disso, o acontecimento “continua a acontecer”, fornecendo mais elementos para a constituição das narrativas públicas. Depois das denúncias de crime sexual, João de Deus já foi associado a casos de garimpos ilegais, posse ilegal de arma e, mais recentemente, ao tráfico internacional de crianças.

Independentemente do que ocorrer com o médium, que está preso desde o dia 16 de dezembro, é salutar perceber tantas iniciativas femininas de denunciarem seus agressores. Nesse sentido, a midiatização dos testemunhos das mulheres foi central para interromper o ciclo criminoso em Abadiânia. Graças a isso, as fiéis que frequentam a Casa de Dom Inácio de Loyola estarão livres, por ora, do homem que conseguiu, utilizando a fé, encarnar muito daquilo que nós conhecemos como significado do mal.

 

Raquel Dornelas

Doutoranda em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

 

 

Referências bibliográficas:

QUÉRÉ, Louis. Entre facto e sentido: a dualidade do acontecimento. Trajectos. Revista de Comunicação, Cultura e Educação, N° 6. Lisboa, ISCTE, Casa das Letras: 2005.



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