Análise | Movimentos sociais e ativismo

Ocupar: verbo transitivo que deu uma lição ao sistema educacional brasileiro

O verbo ocupar ultrapassou o sinônimo de invadir, ao passo que estudantes (pre)encheram e questionaram espaços que são comuns mas frequentemente elitizados (no caso das universidades públicas) ou esquecidos (no caso das escolas públicas periféricas), habitaram, consagraram, se dedicaram a uma causa e a um espaço que é público, mas está em vias de ser privatizado.

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Entre o fim de outubro e o começo de novembro de 2016 eclodiram centenas de ocupações de instituições educacionais por todo o Brasil, capitaneadas por estudantes secundaristas e acompanhadas por ocupações de universidades e greves de técnicos e professores. Esse movimento rompeu com lógicas de protestos e ações feitas até então, reverberando socialmente e convocando a população a lutar contra os retrocessos que o governo de Temer está promovendo, sobretudo por meio da PEC 55 e das reformas da Previdência e do Ensino Médio.

O papel midiático foi essencial para a configuração das ocupações, desde o surgimento e a consolidação de meios alternativos (sobretudo sites, redes sociais e meios de comunicação das universidades que tiveram sua programação adaptada, como a Rádio UFMG) que tentaram mostrar o cotidiano de estudantes-ocupantes, ressaltando a importância do movimento, até a posição dos meios hegemônicos, que ora invisibilizava algo que mudou o cotidiano de muitas comunidades nas cidades brasileiras, ora criminalizava essas ocupações. Estudantes tiveram que enfrentar a falta de estrutura do caráter emergencial que caracterizou as ocupações, a falta de apoio das administrações universitárias, as invasões de infiltrados, a hostilidade de grupos de direita, a repressão policial e a indiferença ou violência simbólica da grande mídia.

Desde o processo de ocupação nas escolas paulistas contra a reorganização escolar proposta pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB) em 2015, a linha de frente do movimento foi intensamente composta por mulheres e LGBTs. O protagonismo feminino tomou corpo e reconhecimento encarnado em Marcela Nogueira Reis, que segurou firmemente uma carteira contra a repressão policial – foto  que viralizou nacionalmente. Todo processo foi documentado no filme “Lute como uma Menina!”, realizado em 2016, por Beatriz Alonso e Flávio Colombini.  Em 2016, foi a voz de Ana Júlia Ribeiro, estudante de 16 anos que discursou corajosamente aos deputados da Assembleia Legislativa do Paraná (ALEP) pelas e pelos estudantes. Em Belo Horizonte-MG, a mesma linha de frente feminina, LGBT e negra foi vista em escolas ocupadas, como nas instituições Santos Dumont e Três Poderes.

Um modelo endógeno de organização trouxe outra cara para as instituições educacionais ocupadas: estudantes se uniram e se revezaram para limpar, cozinhar, debater, se articular e gerir escolas e universidades; emergiram espaços de intensa discussão política, sempre abertos à comunidade, com atividades de interesse público; houve a formulação de demandas e denúncias sobre a situação do contexto universitário e escolar que são desconhecidas ou negligenciadas; e destacou-se um ambiente aberto ao diálogo extremamente solidário, a partir da partilha de experiências e de mantimentos para instituições que recebiam menos doações.

Ainda que muitas mídias tenham se esforçado em enfatizar o verbo ocupar como sinônimo de invadir, foi possível ver que os grupos de estudantes se aprofundaram em sua definição ampla: (pre)encheram e questionaram espaços que são comuns, mas frequentemente elitizados (no caso das universidades públicas) ou esquecidos (no caso das escolas públicas periféricas), habitaram, consagraram, se dedicaram a uma causa e a um espaço que é público, mas está em vias de ser privatizado. No caso da UFMG, o mesmo conselho universitário[1] que ignorou as ocupações e impôs verticalmente um fim para o processo de habitação e apropriação da universidade pelos estudantes, parece jamais ter tentado interferir em irregularidades visibilizadas pelo movimento. Dentre elas, podemos mencionar o “milharal” (espaço completamente fechado que abriga documentos antigos e que não estão à disposição da comunidade) e o “buraco do paulinho” (espaço que deveria ser um estúdio de TV do curso de comunicação, mas que nunca funcionou e virou um depósito com centenas de equipamentos de informática, cadeiras, retroprojetores e tantos outros que fazem falta cotidianamente a professores e alunos, que estariam teoricamente em funcionamento, mas jamais foram utilizados), o que foi alvo de demandas de ocupantes da Fafich.

O acontecimento revelou o despertar da universidade e da escola como patrimônio público, comum, que diz respeito a todas e todos. Ele também provocou questionamentos: como as instâncias administrativas podem pedir reintegração de posse quando o espaço está sendo utilizado por quem tem direito a ele? Como fechar os olhos diante de administrações políticas e educacionais que fingem não saber de problemas graves nessas instituições? Como ignorar um processo de autogestão e todas as discussões que não vemos diariamente nas instituições que deveriam nos ensinar a questionar e mudar realidades? Certamente, teremos definições ainda mais complexas para o verbo “ocupar” depois de 2016.

[1] De acordo com a própria UFMG, o conselho é responsável por questões patrimoniais e administrativas, como as apontadas nesta análise, já que é o “órgão máximo de deliberação da Universidade Federal de Minas Gerais, responsável por formular a política geral da UFMG nos planos acadêmico, administrativo, financeiro, patrimonial e disciplinar”.

Tamires Coêlho – Doutoranda do PPGCOM/UFMG
C.F. – Estudante de Graduação e Ocupante na UFMG



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