Para algumas categorias, o trabalho remoto ou o isolamento remunerados não são opção. É o caso de trabalhadoras domésticas que, além de ficarem sem renda, desempenham um trabalho cuja natureza é associada ao cuidado e à higienização dos espaços, o que as expõe duplamente ao risco do vírus.
Além dos sintomas físicos e dos efeitos psicossociais que, de forma evidente, vêm a reboque da crise sanitária mundial provocada pelo coronavírus, inúmeras fragilidades do nosso modelo de sociedade também estão sendo melhor evidenciadas a partir deste acontecimento. Uma delas é a precariedade de algumas relações de trabalho que, sem o amparo da legislação trabalhista, deixam trabalhadores e trabalhadoras à mercê da ação emergencial do Estado (que está deixando a desejar, para dizer o mínimo) ou da exposição ao contágio do vírus para sobreviver.
Para autônomos, ambulantes, motoristas, entregadores, babás, jardineiros, diaristas, dentre outras categorias, o trabalho remoto ou o isolamento remunerados não são opção, e a equação é simples: se não houver uma ação urgente do Estado, ou se expõem ao contágio ou ficam sem renda. “Ou morremos de coronavírus ou morremos de fome”, como ouvimos.
Especialmente sobre mulheres que trabalham como diaristas, babás e empregadas domésticas, outras nuances recaem e é possível perceber a situação de vulnerabilidade amplificada: além de ficarem sem renda, o que as obriga a usar transporte público e ir trabalhar, desempenham um trabalho cuja natureza é associada ao cuidado e à higienização dos espaços, o que as expõe duplamente ao risco do vírus.
A conversão disso em tragédia pode ser visualizado de forma muito nítida quando verificamos quem foi a primeira vítima fatal do coronavírus no Brasil, no Rio de Janeiro: Cleonice Gonçalves, 63 anos, empregada doméstica que morava a duas horas do serviço e que não foi avisada pela patroa — recém-chegada da Itália — sobre o risco de pegar o coronavírus, muito menos dispensada.
Diante dessa tragédia, diversas denúncias e campanhas de conscientização tomaram as redes sociais, demandando o afastamento remunerado das trabalhadoras domésticas para que elas possam, assim como seus patrões, praticar o isolamento social e se proteger do contágio. No dia 17 de março, o Ministério Público do Trabalho emitiu uma nota técnica com orientações sobre o cuidado com trabalhadoras e trabalhadores domésticos, cuidadores ou vinculados a empresas ou plataformas digitais de serviços de limpeza ou de cuidado. No entanto, a medida apenas recomenda que o mesmo seja adotado em relação aos trabalhadores diaristas, não vinculando o empregador a esse dever.
Cabe lembrar que apenas recentemente, com a PEC das domésticas, a categoria passou a ter acesso aos direitos dos demais trabalhadores. Mesmo após essa tentativa de reparação, apenas 32% possuem carteira assinada, em um quadro de informalidade que condiciona o afastamento remunerado e o auxílio-doença ao bom senso e solidariedade de seus empregadores — o que, como vimos acima, nem sempre acontece.
Para além do não-reconhecimento de seus direitos trabalhistas, a herança escravocrata opera também uma desumanização genocida, na medida em que muitos empregadores colocam seu próprio conforto e comodidade acima da saúde e segurança das trabalhadoras, mulheres negras em sua imensa maioria. Aos olhos da elite, tão acostumada a ver as pessoas negras como sua propriedade, a vida dos trabalhadores domésticos é um bem substituível, irrelevante diante de seus lares limpos e bem arrumados para se protegerem ou se recuperarem do coronavírus.
Cecília Bizerra Sousa, Jornalista, doutoranda em Comunicação (UFMG) e pesquisadora do Gris
Lucianna Furtado, Doutoranda em Comunicação (UFMG)