Análise | Morte Poder e Política

A Covid-19 no Brasil e a mentira como política de governo

Considerando o aumento do número de casos de infecções e mortes pela Covid-19, os autores analisam o cenário atual do país no combate à pandemia e as grandes dificuldades para se garantir os insumos, os equipamentos e a logística necessária para a vacinação da população. Tudo isso se agrava ainda mais com a autoridade máxima da população jogando contra e regozijando-se do sofrimento de brasileiras e brasileiros.

Bolsonaro e o Zé Gotinha durante a apresentação do Planao Nacional de Operacionalização da Vacina contra a Covid-19, no Palácio do Planalto. Fotos: Sérgio Lima / Poder 360

Em 17 de dezembro de 2020, segundo levantamento do portal Covid-19 Brasil, a pandemia do Novo Coronavírus atingiu a marca de 7.110.434 de casos e 184.827 óbitos confirmados no país. Essa mesma plataforma, considerando o cenário de baixa testagem e de subnotificação de casos e óbitos, estima que os casos, em 7 de dezembro, tenham ultrapassado a casa dos 16 milhões.

Estados e municípios têm retornado com medidas mais restritivas de circulação de pessoas e de funcionamento de atividades não essenciais. Enquanto isso, na esfera federal, acumulam-se as declarações sórdidas do presidente da República.

Desde o princípio da pandemia, Jair Bolsonaro tem se colocado como um dos principais agentes contrários à adoção de medidas de prevenção e de combate à doença. Já chamou de histeria o comportamento de alguns gestores e da população e classificou a doença como “gripezinha” (depois, negou que o tenha dito). Já hostilizou governadores e prefeitos que seguiram recomendações de órgãos de vigilância em saúde, chegando ao ponto de editar decretos que ampliaram o rol de atividades consideradas essenciais para burlar restrições impostas por gestores dos entes federados. Já militou pela adoção de medicamentos de eficácia não comprovada, como a hidroxicloroquina. Já promoveu e participou de inúmeras situações de aglomeração sem sequer se submeter ao uso de máscaras. Já demitiu dois ministros da saúde que se pronunciaram diferentemente do script negacionista do Planalto.

E eis que chegamos na chamada segunda onda da Covid-19 – sem que a pandemia tenha sido controlada em algum momento no país – com um ministro e um presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária militares, sem quaisquer experiências na área de saúde e, sem surpresa, com incompetência atestada durante suas gestões.

Enquanto vários países já garantiram a compra de vacinas produzidas pela Pfizer, pela Moderna, pela Universidade de Oxford ou Sinovac, o Brasil patina na definição de uma estratégia clara para a garantia de insumos e instrumentos necessários para o início da vacinação dos cidadãos. Sem a necessária e obrigatória coordenação central do Ministério da Saúde, governos estaduais e municipais garantiram na justiça o direito de poder elaborar seus próprios planos de vacinação e de adquirir as doses, equipamentos e insumos para iniciar suas próprias campanhas de imunização. A ausência de uma estratégia nacional que articule as ações de vacinação em todo o país rompe com princípios fundamentais do Sistema Único de Saúde, como “a hierarquização, a regionalização, a universalização e principalmente a equidade”, conforme salienta o ex-secretário do Ministério da Saúde, Wenderson Oliveira.

Como se não bastasse esse cenário de gestão caótico, o presidente e seus correligionários promovem mais caos: militam para disseminar desconfiança na população no tocante à segurança das vacinas. A absoluta falta de humanidade do presidente chega ao ponto de comemorar a morte de um voluntário dos testes de vacina em São Paulo (fato trágico que se comprovou não ter nenhuma relação com os testes do imunizante). Nas redes sociais e dentre os apoiadores do presidente, não cessam de circular teorias conspiratórias que sugerem absurdos como a presença do vírus HIV nas vacinas em teste ou a inserção de microchips capazes de rastrear a população. Seu desprezo pela questão não poupou nem o Zé Gotinha: mesmo negando o aperto de mão do presidente, o boneco teve seu braço agarrado pelo mandatário.

Em um vídeo que circulou nas redes sociais na segunda semana de dezembro, o presidente aparece com uma voz fina e um sorriso no rosto: “Estou com Covid!” e solta uma gargalhada acompanhada por seus interlocutores de cena. Quem acompanha Jair Bolsonaro desde sua época de baixo clero na Câmara dos Deputados se espanta, porque o horror sempre causa espanto. Mas não vê novidade. Sua perversão e sua crueldade já fizeram outras vítimas no país, como os familiares de presos e mortos pela Ditadura, pessoas negras, pessoas LGBTQI+. E, mesmo com esse histórico, em 2018, a maioria dos eleitores decidiu que ele deveria governar a todas e todos e, atualmente, parcela significativa da população (cerca de 35%) parece aprovar sua gestão.

Ao olhar para o trágico acontecimento da pandemia em nosso país, salta aos olhos as consequências de um governo autoritário, que fabrica uma realidade alternativa e nega a realidade existente, fazendo da “mentira uma política de governo” (FINCHELSTEIN, 2020, p. 14). Combater as mentiras que são apresentadas como verdade pelo presidente e seus apoiadores é fundamental para o enfrentamento da crise sanitária instaurada pela covid-19. Mais que isso, como aponta Finchelstein em sua oportuna História das mentiras fascistas, “o questionamento dessas mentiras é de importância fundamental para a sobrevivência da democracia”. (FINCHELSTEIN, 2020, p. 23).

FINCHELSTEIN, Federico. Uma breve história das mentiras fascistas. São Paulo: Vestígio, 2020.

Frances Vaz, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social (UFMG)
Paula Simões, professora do PPGCOM/UFMG. Pesquisadora do GRIS



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