Análise | Poder e Política Religião Violência e Crimes

Um crime em família e o uso político do discurso cristão

Na vida pública, um lar perfeito: Anderson, Flordelis e seus 55 filhos. O assassinato do pastor revela, porém, uma realidade distinta: brigas, traições e a disputa por poder e dinheiro nos bastidores de uma família aparentemente religiosa e feliz.

Flordelis e Anderson. Foto: reprodução / Facebook

Junho de 2019. Anderson do Carmo, pastor evangélico e marido da deputada federal Flordelis dos Santos (PSD-RJ), também pastora, é assassinado com mais de 30 tiros na madrugada do dia 16. Horas depois do crime, Flordelis relatou que o marido foi vítima de um assalto na garagem de casa. A versão da deputada não se sustentou. Flávio dos Santos, filho biológico de Flordelis, e Lucas dos Santos, filho adotivo do casal, foram presos. A arma utilizada no crime foi encontrada pela polícia no quarto de Flávio, que admitiu ter matado o padrasto.

Agosto de 2020. As investigações levaram o Ministério Público e a Polícia Civil do Rio de Janeiro a indiciar Flordelis como mandante do assassinato do marido. O crime teria sido a tentativa bem-sucedida depois de tantas outras frustradas desde 2018. Segundo investigações, a pastora teria tentado, por seis vezes, envenenar o marido com arsênico na comida. De acordo com o MP-RJ, o assassinato envolve mais 10 pessoas: uma neta, sete filhos do casal, além de um ex-policial e sua esposa. Todos estão presos, menos Flordelis, que tem imunidade parlamentar e continua negando qualquer participação.

Dezembro de 2020. No dia 18 foi realizada mais uma audiência do julgamento no Fórum da 3ª Vara Criminal de Niterói. Nela, Flordelis admitiu, pela primeira vez, que sabia da existência de um plano para matar Anderson e que chegou a avisar o marido, que preferiu resolver por conta própria o conflito. No entanto, o depoimento de Lucas dos Santos, acusado de intermediar a compra da arma utilizada, reforça a tese de que Flordelis é a mandante do crime. O julgamento será retomado no dia 22 de janeiro de 2021.

Ainda que o julgamento não tenha sido encerrado, a morte de Anderson traz à tona importantes elementos para pensar na construção da figura pública de Flordelis. Muito além de um projeto de caridade e evangelização fundamentado em valores cristãos, a trajetória da deputada parece ter sido calculada para alçá-la ao poder. A adoção de tantas crianças em comunidades carentes do Rio de Janeiro trouxe inicialmente reconhecimento religioso e midiático para Flordelis e o companheiro Anderson, que fundaram a Comunidade Evangélica Ministério Flordelis, em 1999. O próximo passo foi a carreira política. Após algumas tentativas frustradas, Flordelis foi eleita deputada federal em 2018 como a mulher mais votada e a quinta dentre os candidatos com mais votos do Rio de Janeiro.

Nos bastidores da fama de Flordelis estava sempre Anderson, responsável por administrar os ganhos advindos da carreira religiosa e política bem-sucedida da esposa. As investigações revelam um assassinato brutal planejado por ela, com a participação dos filhos, por desavenças na administração das finanças da família. Tudo se deu, portanto, no seio familiar, instituição contraditoriamente hipervalorizada pela figura pública de Flordelis. Tão contraditório quanto – e mais chocante ainda – é o fato de que o assassinato estaria revestido de valores supostamente cristãos, pois seria uma solução “menos ofensiva” a Deus do que o divórcio – um dos promotores do caso afirmou em entrevista coletiva que a deputada teria dito a um dos filhos que não poderia se separar de Anderson para não “escandalizar o nome de Deus”.

O suposto argumento é no mínimo contraditório, já que desconsidera dois mandamentos “Não matar” e “Honrar pai e mãe”. As investigações também apontaram que Anderson e Flordelis mantinham relações sexuais com os filhos e filhas e que frequentavam uma casa de swing no Rio, lugar onde teriam ido na noite do crime. Novamente, a prática vai na direção oposta da postura conservadora sustentada publicamente. No entanto, se pensarmos no uso político do discurso cristão, cujas práticas e valores são selecionados e criteriosamente praticados para atender ao indivíduo e a um projeto, percebemos que a transgressão de alguns preceitos é um desvio que pode até não levar ao céu, mas enriquece e traz muito poder.

Cecília Bizerra Sousa, jornalista, doutoranda em Comunicação Social (UFMG) e pesquisadora do Gris
Fabíola Souza, professora substituta no Departamento de Jornalismo da UFOP e pesquisadora do Gris



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