Análise | Gênero e sexualidade Violência e Crimes

Caso Mariana Ferrer e o capítulo “estupro culposo”

Nas últimas décadas, tem sido cada vez mais urgente e crescente a discussão em torno do combate à cultura do estupro. Ainda assim, casos recentes, como o da influencer Mariana Ferrer, demonstram que ainda há muito caminho pela frente.

Imagem: Tumisu / via Pixabay

O caso Mari Ferrer ganhou mais um capítulo em novembro de 2020. Gatilho: a divulgação de trechos da sentença de absolvição de André de Camargo Aranha, acusado de ter dopado e estuprado a influencer na noite de 15 de novembro de 2018, em um evento do Café de La Musique, em Jurerê Internacional, e as imagens do humilhante tratamento recebido pela jovem por um corpo de juristas completamente formado por homens.

A sentença, que tinha como justificativas a insuficiência de provas e a tese de “ausência de dolo”, fez com que o jornal The Intercept publicasse uma matéria apresentando o termo “estupro culposo”, o que motivou a revolta de milhares de pessoas que se mobilizaram nas ruas e nas redes sociais para afirmar que “#NãoExisteEstuproCulposo” e reivindicar “#JustiçaPorMariFerrer”. As hashtags ocuparam os trend topics da rede social Twitter durante todo o dia 3 de novembro, mesmo dia da publicação da notícia. 

As imagens divulgadas do julgamento causaram espanto e revolta. Sem grandes intervenções por parte do juiz, Rudson Marcos, ou do promotor, Thiago Carriço de Oliveira, o advogado de defesa de Aranha, Cláudio Gastão da Rosa Filho, em tom acusatório, utilizou fotos da modelo publicadas nas redes sociais para humilhá-la e torturá-la, na tentativa de desmoralizar Mari Ferrer, dizendo que ela tem como “ganha-pão a desgraça dos outros”. 

A mobilização se espalhou por todo o mundo. No Brasil, milhares de pessoas se manifestaram em suas redes sociais, incluindo celebridades e figuras públicas, como Bruna Marquezine, Deborah Secco, Iza, Bruno Gagliasso, Rafa Kalimman e Anitta, o ministro Gilmar Mendes, além de perfis institucionais e de times de futebol. Além do Brasil, mulheres em Portugal, Holanda, Espanha e Polônia também se manifestaram nas redes sociais. No dia 9 de novembro, mobilizações foram convocadas nas ruas de várias capitais para pedir justiça por Mari Ferrer.

Ainda que o polêmico termo “estupro culposo” tenha ocupado grande parte da atenção pública, o julgamento de Aranha traz à tona outras discussões importantes: 1) críticas a respeito da irresponsabilidade da mídia que rapidamente, sem apuração, fez circular informações deturpadas sobre o caso, dando a entender que a sentença seria a criação de uma nova qualificação do crime de estupro (o estupro culposo que não existe no código penal),  o que seria improdutivo e pouco pedagógico do ponto de vista da discussão jurídica; 2) o machismo ainda presente em nosso sistema de justiça formado, em sua maioria, por homens, sendo as leis criadas há séculos também por eles, o que promove, em alguma medida, situações de vulnerabilidade para as mulheres e a descrença no relato da vítima, como no caso de Mari Ferrer; 3) o papel da justiça no trato e acolhimento da vítima e o questionamento sobre o violento tratamento dado à jovem pelo advogado de defesa de Aranha e o silenciamento do defensor público, do juiz e do promotor, responsáveis pela decisão de absolvição, em razão da ausência de dolo, e pela revitimização da jovem.

Do ponto de vista legal, houve uma evolução relevante para as  mulheres com a promulgação de leis como a Lei 11.340/2006, contra a violência doméstica, a Lei 12.015/2009, que atualiza o código penal brasileiro e qualifica crimes contra a liberdade sexual como crime hediondo, e a Lei 13.140/2015, que determina como crime hediondo o assassinato de mulheres pela sua condição de gênero. Apesar disso, ainda persiste entre alguns juristas a sustentação de justificativas arcaicas para defender agressores de mulheres, como a tese da legítima defesa da honra, que parecia haver sido superada após o caso Ângela Diniz, e a negação de relatos de vítimas de estupro que resultou na tese de estupro sem dolo, no caso Mariana Ferrer. Outra estratégia não superada é a de atacar a moral da vítima como forma de justificar a conduta dos agressores: de novo uma triste semelhança entre os julgamentos de Doca Street e Aranha, ou melhor, os julgamentos de Ângela Diniz e Mariana Ferrer, que passaram de vítimas a rés.

A realidade a ser discutida não está exatamente ligada ao fato de existir ou não “estupro culposo”, ter ou não ter sido mencionado o termo na sentença do julgamento, como priorizado por alguns juristas. A realidade a ser discutida são as várias formas como mulheres são estupradas, diariamente, física e simbolicamente, e a forma como Mari Ferrer, em todas as etapas do processo, inclusive na audiência, foi violada em seus direitos como mulher, em sua credibilidade, questionada em sua feminilidade como arma para “se dar bem”.

A forma como relatos femininos são contestados, como seus corpos são dominados, seus desejos, condenados e as vozes, silenciadas é oque deve ser discutido. Uma vítima desacreditada, tratada em julgamento como oportunista, ou, como ela mesma diz, “pior do que o agressor ou assassinos”.

A forma como as diversas Mari Ferrer são tratadas quando procuram justiça pela violência sofrida é mais um sintoma de um problema maior. Em uma sociedade onde a cada oito minutos uma mulher é estuprada, e onde a maioria dos casos de violência contra a mulher acontecem dentro de casa, o silêncio é ensurdecedor para as vítimas de crimes sexuais. Consentimento deveria ser palavra de ordem, mas cede espaço à mordaça de uma sociedade machista e patriarcal, onde corpos femininos domesticados apenas servem ao prazer e à procriação.

Frente ao silêncio ensurdecedor imposto pela justiça a Mari Ferrer, os gritos mobilizados e sincronizados nas redes sociais dão voz às diversas “Mari Ferrer” que existem no Brasil. O grito #JusticaPorMariFerrer e #NãoExisteEstuproCulposo irrompe de forma dolosa para contestar a ideia de que exista algum, dentre os vários tipos de estupro que mulheres sofrem diariamente, que não tenha dolo.

Danielle Silva Peixoto, mestre em Comunicação Social pela UFMG



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