A intriga foi instaurada e sua reverberação continua a ganhar editoriais, entrevistas, artigos, mobilizações. É claro que o assunto é pertinente, pois estamos falando de liberdade de expressão em nosso país. Entretanto, um dos elementos que mais contribuiu para a repercussão do assunto foi a participação de um grupo de artistas que, de alguma maneira, ainda mantém uma força simbólica relevante na sociedade. A história é antiga, mas teve seu poder de afetação amplificado após entrevista dada pela produtora Paula Lavigne à Folha de S. Paulo, no mês de outubro. Ela assume a linha de frente de uma entidade chamada “Procure Saber”, que representa alguns nomes consagrados da MPB (como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Roberto Carlos entre outros). Esse grupo se insurge contra a alteração dos artigos 20 e 21 do Código Civil, que estabelecem restrições para a publicação de biografias.
Espanto, surpresa e comentários atônitos respondem pelas primeiras reações (em especial com a presença de Chico Buarque): muitos desses artistas, incansáveis lutadores contra a censura, agora em outra trincheira?! O assunto ganhou repercussão em todos os suportes, justamente porque nomes representativos de um certo establishment cultural aparecem na contramão dos anseios por liberdade de expressão em todas as esferas. O momento cultural brasileiro é muito mais diversificado e abriga outras manifestações culturais, não mais dependentes da indústria fonográfica e cultural, que circulam de maneira livre pelas redes (e até nos meios tradicionais). Daí o paradoxo e a reverberação. Talvez em outros tempos, não teríamos tantas manifestações contrárias em tão curto espaço de tempo. Não precisamos mais do direcionamento das “vacas sagradas”, na expressão da jornalista Bia Abramo. Os tempos são outros. Felizmente.
Hoje não temos a ditadura militar, mas temos uma legislação restritiva, que praticamente impede a publicação de biografias (e pior, pode até mesmo vetar a veiculação de reportagens). A liberação dessas produções aparece como a ponta do iceberg de um país que ainda carrega consigo relevantes traços de autoritarismo (vide a prisão de inúmeros manifestantes a partir da nova lei nova Lei do Crime Organizado – 12.850/2013 – durante os protestos mais radicais nas últimas semanas). A questão é, inclusive, mais ampla do que tem sido pautada, já que esses artigos podem impedir não só a publicação de biografias, mas obras literárias e audiovisuais.
Esses artigos do Código Civil estão sendo questionados pela Associação Nacional dos Editores de Livros – ANEL, que interpôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade aos artigos já citados, na medida em que a Constituição garante liberdade de expressão e o direito à informação. Em 2006, por exemplo, Roberto Carlos valeu-se desses artigos para conseguir a proibição de sua biografia produzida pelo jornalista e historiador Paulo César de Araújo. Os escritores também não ficaram de fora dessa questão e lançaram um manifesto na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, antes, inclusive, da entrada em cena dos músicos. O Manifesto é claro ao dizer que “o Brasil é a única grande democracia na qual a publicação de biografias de personalidades públicas depende de prévia autorização do biografado”.
Seria a instituição das biografias chapa-branca, da história daqueles do “andar de cima”. Como diz o jornalista Mário Magalhães (autor da biografia de Marighella), a persistir esses artigos do Código Civil, “numerosos historiadores e jornalistas descartaram biografias promissoras, nocauteados pela intimidação de biografados e herdeiros que só admitem retratos bajuladores”.
Ao defender a liberdade de pesquisa para produções intelectuais não se está defendendo a irrestrita veiculação de ideias, afinal o aspecto deontológico é essencial. Refletir sobre o método adotado para a consecução de uma biografia não é só destrinchar os caminhos seguidos por quem escreve, mas é também, como pensava Jean-Paul Sartre, pensar sobre si, pois ao escrever sobre o outro, o biógrafo acaba falando de si mesmo, afinal é um sujeito “contando” a vida de outro sujeito. Nesse sentido, quando o biógrafo esclarece suas contradições e limites, está admitindo também que a biografia é construída por opções e seleções e que a subjetividade permeia toda a obra produzida. Mais que isso, o biógrafo, ao contar a vida de um sujeito, deve levar em consideração que a compreensão do passado, de acordo com Peter Berger, depende de pontos de vista, então dificilmente as biografias poderão ser encaixadas em sistemas homogêneos, dotados de uma coerência certeira. Isso quer dizer que ninguém está isento de produzir material biográfico que possa conter “distorções”, entretanto a justiça já garante direitos aos que se sentirem prejudicados.
O músico Alceu Valença, um dos primeiros a se manifestar de forma contrária a esse movimento, levanta um argumento bastante relevante: “fala-se muito em biografias oportunistas, difamatórias, mas acredito que a grande maioria dos nossos autores está bem distante desse tipo de comportamento. Arrisco em dizer que cerceá-los seria uma equivocada tentativa de tapar, calar, esconder e camuflar a história no nosso tempo e espaço. Imaginem a necessidade de uma nova Comissão da Verdade daqui a uns 20 anos…”. É bom nem pensar.
Mesmo com o acontecimento ainda em curso (com a entrada em cena agora do famigerado deputado Jair Bolsonaro), ao menos três chaves de leitura já podem ser destravadas: a primeira expressa a forte proeminência do sujeito na contemporaneidade. A segunda chave indica que o dique da hegemonia cultural foi rompido, abrindo espaço para futuros possíveis. A outra refere-se às esferas pública e privada, afinal até que ponto o argumento do direito à privacidade pode reduzir o direito à informação sobre o que é público, afinal como já disse François Dosse, autor das biografias de Paul Ricoeur e Deleuze/Guattari, “a biografia pode ser um elemento privilegiado na reconstituição de uma época, com seus sonhos e angústias”; para isso é preciso deixá-la falar, em uma perspectiva hermenêutica de não querer colocar um ponto final nessa história.
Marta Maia
Professora do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto
Pesquisadora do GRIS/UFMG
PS: Para quem quer saber mais, vale a pena acompanhar o levantamento que o jornal O Globo fez sobre o assunto.
Foto: Montagem Grislab
Em tempo! Indico ainda artigo intitulado “Medos privados em lugares públicos – Homem cordial assombra biografias”: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/137093-medos-privados-em-lugares-publicos.shtml
Precisamos discutir, como propõe o Nísio, mas por qual ótica? Se nos deixarmos pautar pelas celebridades, corremos o risco de direcionarmos a discussão estritamente para o espaço privado, desqualificando o aspecto histórico que essa discussão deve considerar. Quando Roberto Carlos, na entrevista do Fantástico, diz que contaria muito melhor certas passagens de sua vida, está simplesmente querendo assinalar que a sua versão é a verdadeira, como que se fosse possível etiquetar o real. Sabemos que o real é muito complexo para ser apreendido somente por um viés. O jornalista Marcelo Soares apresenta um argumento muito relevante ao dizer que, ao persistir esses itens do Código Civil, podemos ter uma situação em que uma autobiografia, por exemplo, poderá responder pela história de uma personalidade pública, sem possibilidades de confronto com outras versões (https://www.facebook.com/marcelo.soares/posts/10151708596806451). Por isso acredito que essa discussão deva ser feita de maneira ampla e com a participação de toda sociedade. Se a ótica da liberdade de expressão (com responsabilidade e respeitando a privacidade) é o ponto nevrálgico, então porque os responsáveis do “Procure Saber” dizem que as biografias poderiam ser veiculadas na internet, mas não poderiam ser impressas? Nesse caso, o aspecto comercial prevalece, sem dúvida alguma. E o mercado, a gente sabe, é implacável.
Luciana, parece-me inclusive que o grupo assume esta característica de “porta-voz” por lutar por uma causa maior precisamente por aqueles que não têm vez (acho que é o Gil quem fala nesse trecho, no vídeo link do André).
A questão da Marta é crucial porque toda a discussão pode recair para um dos mais elementares protocolos jornalísticos, exemplificado em uma pergunta que coloquei para os meus alunos em sala em algumas ocasiões: uma vez a entrevista pronta, você enviaria para que o entrevistado desse o OK final?
Mas a outra pergunta que me faço é aonde, quando ou como essa corda de confiança entre fonte e entrevistado se rompeu? Os mesmos artistas tão acessíveis – possível exceção a Roberto Carlos – hoje cada vez mais blindados por assessorias jurídicas e mesmo comunicacionais (olha a Comunicação aí, outra vez, na questão, aliás bem levantada pelo Paulo César Araújo no Roda Viva).
Onde o jornalismo pisou na bola – considerando que a maioria das biografias é escrita por jornalistas – justifica a prévia concepção então de que todo escritor de biografias vai ser um xereta inconveniente? David Nasser no Cruzeiro seria um marco nesse aspecto (casos Carmen Miranda e Dalva de Oliveira)?
A narrativa biográfica, suas instâncias comunicativas e jornalísticas nos dois pólos da questão e sua interface com as celebridades se apresentam, de fato, como tema urgente e necessário para uma discussão.
Atenciosamente,
Nísio
Censura x privacidade é uma importante questão da atualidade. Acho que falarmos sobre esse assunto é fundamental, daí porque me atrevo a participar desse fórum mesmo tendo um conhecimento limitado sobre o assunto. Com relação a questão sobre qual a medida que queremos para a liberdade de expressão, minha pergunta é se não é possível uma opção que não seja binária. Se é possível, qual seria essa opção? Com relação à afirmação de que “a justiça já garante direitos aos que se sentirem prejudicados” não acho que isso se dê na prática e diante dessa realidade, como ficam as pessoas que forem caluniadas? Se não me engano, ano que vem completam 20 anos do episódio da Escola de Base um evento importante de ser lembrado para seguirmos a reflexão. Por último, envio um link para um vídeo em que os artistas do Procure Saber negam censura e dizem que buscam proteção
http://t.noticias.br.msn.com/t-video.aspx?videoid=8c3c262a-e82a-ecd7-5d45-236ebc02d4fb
Seguimos conversando.
André Melo Mendes
O artigo de Marta Maia coloca o dedo na ferida. No que tange aos desafios político-culturais do Brasil, o acontecimento em tela nos pergunta: qual é a medida da liberdade de expressão que queremos? Ampla, a la modelo estadunidense ou restrita, com marco legal gerado a partir da sociedade civil (de baixo para cima, portanto)?
Por isso, penso também no que a controvérsia não diz. Quando artistas se reúnem para lutar por seus interesses, a própria visibilidade e os recursos simbólicos e econômicos a ela associados, dão às celebridades vantagens em relação a outros grupos sociais. O que não é de modo algum ilegítimo. Mas, considerando-se que a liberdade de expressão no Brasil vem sendo historicamente vilipendiada, o que o mestre Paulo Freire chama de “cultura do silêncio”, há a tendência de que a mesma força censora que opera de forma tácita retirando de parcelas da população o direito de palavra em relação às suas reivindicações por justiça, opere de forma violenta e invisível impedindo a participação cívica ampliada no que se refere à mudança (ou não) dos artigos 20 e 21 do Código Civil. Se assim for, presenciaremos a mais um “efeito silenciador dos discursos”, o próprio cale-se do título de Maia.
Luciana de Oliveira, professora do DCS e PPGCOM-UFMG; pesquisadora do Gris