Análise | Diário da Quarentena Poder e Política Questões raciais

Sentenças criminais “em razão da raça” e os crimes de racismo praticados por brancos

Ao destacar a raça negra do acusado como razão para o pertencimento a um grupo criminoso, a juíza Inês Marchalek Zarpelon evidenciou uma prática racista comum no sistema judiciário, que normalmente acontece de maneira encoberta.

Foto: Marcello Casal Jr / Agência Brasil

O debate sobre o racismo em processos jurídicos se reacendeu recentemente, devido a um caso em que a discriminação foi explicitamente documentada: a juíza Inês Marchalek Zarpelon, atuante em Curitiba (PR), assinalou que o réu era “seguramente integrante do grupo criminoso, em razão de sua raça”, aumentando a pena em sete meses. Como informou a advogada de defesa, a juíza ainda citou a raça mais duas vezes, de forma ligada aos crimes. A magistrada atribuiu a elevação da pena à conduta social do acusado, mas o próprio texto da sentença a contradiz, apontando que ele é réu primário e que “nada se sabe” sobre sua conduta.

A Corregedoria Nacional de Justiça determinou a abertura de um inquérito, destacando a infração da Lei Orgânica da Magistratura Nacional e do Código de Ética da Magistratura. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pediu ao Ministério Público a investigação por crime de racismo, e a Defensoria Pública do Paraná anunciou uma força-tarefa para revisar as sentenças realizadas pela juíza nos últimos 12 meses. A advogada de defesa pediu a anulação da decisão e aguarda a análise do recurso.

Com a repercussão, Inês Marchalek Zarpelon pediu “sinceras desculpas”, alegando que a frase foi retirada de um contexto maior e que não houve o propósito de discriminar em razão da cor. No entanto, não se trata de um mal-entendido: detalhado na Lei 7.716/89, o crime de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia (…)” é imprescritível e inafiançável, com pena de multa e reclusão de um a três anos, além da perda do cargo quando se tratar de servidor público. Como afirmou a Diretora da Anistia Internacional no Brasil, Jurema Werneck, o pedido de desculpas não repara a violação de direitos e não exime de responsabilidade pelo ato de racismo.

No entanto, se o histórico for indicativo do futuro, as chances de que Inês Marchalek Zarpelon seja condenada por racismo parecem baixas: um levantamento do Laboratório de Análises Econômicas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser-UFRJ) mostrou que apenas 30% dos processos por racismo e injúria racial resultaram em condenação. Enquanto as pessoas negras tendem a ser condenadas por sua cor, as pessoas brancas que cometem os crimes de racismo costumam ser absolvidas por sua cor branca – não coincidentemente, são absolvidos por seus próprios pares brancos, já que 80% dos juízes no Brasil se declaram brancos.

A condenação de pessoas negras por critérios racistas é uma prática cotidiana que cerca – e cerceia – nossa vida social. Isto se materializa nos seguranças que nos seguem em shoppings e impedem nossa entrada em determinados espaços, nas abordagens e operações policiais violentas, nas testemunhas que nos identificam como criminosas pelo cabelo cacheado e crespo e em tantas prisões injustas sem direito ao devido processo investigativo e jurídico. Como destacou o escritor e ativista Alessandro Santos, práticas como estas se fundamentam em antigas crenças de intelectuais racistas, que atribuíam falhas de caráter, inferioridade de pensamento, perversão sexual e criminalidade à herança biológica e social das pessoas africanas.

Desse modo, a sentença racista determinada pela magistrada não choca por ser um ato incomum, atípico ou fora da curva; mas apenas por nomear por escrito, de maneira oficial nos autos legais, uma forma de racismo normalmente deixada implícita, um acordo tácito da branquitude que não precisa ser dito ou escrito para ser praticado. Por isto, é importante que a indignação com o caso de Inês Marchalek Zarpelon não se encerre nele, mas seja tomado como força motriz para investigar e solucionar o racismo no Poder Judiciário de forma sistêmica.

Lucianna Furtado, Doutoranda em Comunicação Social pelo PPGCOM-UFMG, integrante dos grupos de pesquisa Gris, Coragem e Escutas



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