No dia 3 de fevereiro deste ano, morreu a ex-primeira-dama Marisa Letícia Lula da Silva, no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, onde fora internada no dia 24 de janeiro após um Acidente Vascular Cerebral. O próprio ex-presidente, durante o enterro de sua esposa, afirmou que a saúde de Marisa estava debilitada devido às perseguições políticas que sua família sofria: “Dona Marisa morreu triste com a maldade que fizeram com ela” [1]. O ex-ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, alegou que “essa morte está muito ligada a esse clima de ódio que existe no país”; enquanto o senador Lindbergh Farias (PT-RJ) apontou diretamente que as investigações feitas contra a família “mataram dona Marisa”, “vítima de uma perseguição infame”.
A investigação referida pelos políticos é a que tornou Marisa ré em duas ações da Operação LavaJato: uma que investiga se uma suposta reforma de um triplex em Guarujá teria sido feita com propina paga pela construtora OAS (investigada por seus contratos com a Petrobrás) em troca da influência política de Lula; e outra que inquire se houve pagamento de propina pela Odebrecht na compra de um terreno para a construção da nova sede do Instituto Lula e na compra do imóvel ao lado do apartamento do ex-presidente, em seu prédio em São Bernardo do Campo (SP). Após a morte de Marisa, o juiz federal Sérgio Moro – que julga as ações de primeira instância da Operação Lava Jato – arquivou as acusações contra a primeira-dama [2].
Enquanto essas duas ações corriam no ano passado, a privacidade da família de Lula foi exposta com a divulgação autorizada pela Justiça de escutas telefônicas [3] realizadas entre fevereiro e março, muitas delas com um conteúdo pessoal e corriqueiro. Um dos grampos que causou maior repercussão na imprensa e revolta entre certos públicos foi o da conversa entre Marisa e seu filho, em que ela diz que gostaria que as pessoas que se manifestam batendo panelas “enfiassem as panelas no c*” [4]. Um ano antes de sua morte, portanto, vimos a imagem pública da primeira-dama se aproximar da controvérsia: seu nome foi envolvido em investigações de corrupção e fomentou-se algum ódio voltado à pessoa pública de Marisa. Em comentários acerca da notícia do grampo no Estadão [5],ela foi descrita como “boca suja”, “vigarista”, “desequilibrada”, “vergonha”, além de numerosas ofensas sexuais.
Mas quem foi Marisa Letícia? Apesar da discrição que sempre procurou manter em sua vida pública, traços de sua biografia emergem com sua trágica morte [6, 7 e 8]. Sua infância pobre, trabalhando cedo e com poucas oportunidades de estudo; seu primeiro encontro com Lula – ambos operários e já viúvos; sua participação na fundação do Partido dos Trabalhadores – cuja primeira bandeira foi costurada pela própria Marisa. As acusações e perseguições políticas do ano passado não eram exatamente novidade para sua família: desde a fundação do PT até a vitória nas eleições de 2002, Marisa relata as diversas dificuldades e medos que teve, principalmente na época da Ditadura Militar [9].
A biografia de Marisa encarna, assim, valores bastante enaltecidos em nossa sociedade – a simplicidade, a superação de condições sociais precárias, o valor da família. No entanto, nos últimos meses de vida, Marisa acabou por se tornar um rosto político no qual muitos também demonstravam o sentimento de indignação e ódio – sentimentos que, até então, eram comumente direcionados ao seu marido, o ex-presidente Lula. Em momentos como a divulgação dos grampos, como também no acontecimento de sua internação, muitos comentários de ódio contra Marisa na internet emergiram em redes sociais [10]. Mesmo com um pequeno grupo de pessoas comovidas com sua internação em frente ao hospital [11], houve também quem se aproveitasse para protestar no local contra posicionamentos do governo de seu marido, com cartazes escritos “Cadê os médicos cubanos?” e “SUS” [12]. Diversos boatos circularam na Internet após a morte da primeira-dama [13]: ela estaria viva na Itália; Lula teria usado um banner com o escrito “LULA 2018” no funeral da esposa; o ex-presidente teria pedido a prisão de Sérgio Moro após a morte de Marisa. Todos esses boatos, por sua vez, pareciam usar o acontecimento da morte da primeira-dama a fim de incentivar a antipatia contra a imagem ameaçadora de Lula [14], potencial candidato à presidência da república em 2018.
Estamos aqui diante de uma situação de falta de empatia pública com a dor do outro? Para o filósofo Hans Joas¹, um indivíduo pode ser empático com sujeitos de um grupo e, ao mesmo tempo, não saber aplicar a atitude de empatia para outros grupos diferentes. A solução estaria, portanto, numa dimensão mais profunda: precisamos retornar à sacralidade da pessoa, ou seja, à crença de que todo indivíduo humano possui um corpo sagrado e que deve ser inviolável. Essa sacralidade “nos motiva para a empatia” enquanto “a empatia por si só não produz a sacralização da pessoa”².
O uso da morte da primeira-dama como estratégia política de grupos e públicos para emitir críticas e ataques “antipetistas” se mostra como um incentivo não só à falta de empatia à dor do outro, mas também à dessacralização de uma pessoa em estado de saúde frágil – cuja doença logo se provou fatal. Os desejos e comemorações diante da morte, os discursos de ódio, ofensas sexistas e a ampla proliferação de boatos após esse acontecimento são sintomas de um conflito social mais amplo, mantido pelos acontecimentos políticos brasileiros e as controvérsias emergidas na esfera midiática desde o início do governo Lula. Em uma visão mais extrema, podemos dizer que esses acontecimentos apontam para a “formação de uma identidade coletiva mediante a exclusão de inimigos”; uma forma de união de um público que “necessita de inimigos sempre novos ou de uma inimizade duradoura para que possa estabilizar-se”³. A morte de Dona Marisa, bem como a repercussão marcada por ódio e desrespeitopor certos grupos, demonstra os limites desumanos e dessacralizantes que um “antipetismo” no Brasil pode alcançar. E Lula permanece, assim, como o inimigo duradouro que o conservadorismo em nosso país quer destruir.
¹JOAS, Hans. Punição e respeito: a sacralidade da pessoa e as ameaças a ela. In: ______. A sacralidade da pessoa: nova geologia dos direitos humanos. Editora Unesp, 2011. p. 61-104.
Paula Simões
Professora do PPGCOM-UFMG
Coordenadora do GrisLab e pesquisadora do Gris
Afonso Sepulveda
Doutorando do PPGCOM-UFMG