Análise | Especial Questões socioambientais

Dossiê Mariana: Rio Doce – Muito além de Bento Rodrigues

Os estragos causados pela barragem da Samarco não afetaram apenas Bento Rodrigues. Se assim fosse, já seria demasiadamente terrível. Mas a lama chegou até o leito do Rio Doce. Em Governador Valadares, cerca de 260 mil pessoas ficaram sem água. No Espírito Santo, o litoral recebeu os rejeitos justamente no alto verão. O rio está morto? Como viverão os pescadores daqui para frente? São alguns dos questionamentos que surgiam enquanto a lama descia com seu rastro de destruição.

Foz do Rio Doce em Regência (Linhares/ES), nos dias 21 e 22/11/2015, respectivamente. Fonte: facebook.com/quebrandootabu

Foz do Rio Doce em Regência (Linhares/ES), nos dias 21 e 22/11/2015, respectivamente. Fonte: facebook.com/quebrandootabu

Quando ouvimos falar do rompimento da barragem próxima a Bento Rodrigues, ninguém imaginava o que ainda estava por vir. No momento em que todos se impressionavam com as imagens da comunidade que desapareceu do mapa, não era possível prever onde a tragédia iria parar.

A lama não se deteve em varrer o distrito de Mariana. Invadiu as águas do Rio Doce e desceu até Governador Valadares, a 350 km do epicentro da tragédia. Na cidade inteiramente cortada pelo rio, os pescadores perguntam agora como vão sobreviver. A universidade, com cerca de 5 mil alunos, chegou a suspender as aulas. Os estoques de água mineral nos supermercados estiveram em falta. Cardumes de peixes mortos causam até hoje um odor insuportável no município conhecido pelo intenso calor – que chega facilmente na casa dos 40o.

Também na aldeia dos índios Krenak, em Minas Gerais, é difícil entender como será a vida daqui para frente. Era no Doce que a tribo pescava, retirava alimento para sobrevivência, conseguia água para os serviços domésticos e costurava toda uma maneira comunitária de ser.

No estado do Espírito Santo, as cidades litorâneas se preocupam com a poluição da costa. A lama, enfim, encontrou o mar. O setor turístico teme prejuízos. O comércio pode perder clientes veranistas. Órgãos ambientais correm para proteger a intensa vida marinha da região.

O cenário de caos causado pelo rompimento da barragem da mineradora Samarco ultrapassou todas as previsões – até as mais pessimistas. E, enquanto a lama percorria os mais de 600 km, novas nuances iam costurando o acontecimento, causando ainda mais questionamentos e reconfigurando, a todo tempo, seu processo de apreensão.

Louis Quéré já nos falava dessa dupla vida do fenômeno de caráter acontecimental. Em um primeiro momento, ele nos atinge na dimensão mais sensível da experiência, nos interpela no âmbito mais imediato da vida social. Posteriormente, demanda um processo de simbolização. Pede para ser compreendido. Adquire significados.

E foi justamente nessa segunda fase, que novas óticas começaram a ser apropriadas. Quando percebemos que as consequências do mar de lama iriam muito além das fronteiras de Bento Rodrigues, novos discursos foram acionados. Narrativas demasiadamente alarmantes se entrelaçaram com boatos, pouca informação e dados desencontrados. O Rio Doce está morto? Vai mesmo demorar 100 anos para se recompor? Ou é só uma questão de tempo para tudo se normalizar?

Não foi só em Bento Rodrigues. Se fosse, já seria demasiadamente trágico. Mas não sabemos o que será da costa do Espírito Santo. Nem dos efeitos a longo prazo em Minas Gerais – onde o abastecimento de água, aos poucos, volta ao normal. Não é hora de condenar quem fez e faz previsões mais catastróficas. Nem os que acharam por bem não alarmar pelas redes sociais. Informações desencontradas fazem parte do processo de simbolização do acontecimento. Este, em especial, ainda provoca inúmeras interrogações. Presencia discursos em choque. Permanece causando tensões. Mostra que o seu poder de afetação e revelação está longe, muito longe de ser plenamente compreendido por nós.

 

Raquel Dornelas
Mestre em Comunicação pelo PPGCOM-UFMG
Professora da Universidade de Vila Velha
Membro do Gris

 

Confira as outras análises do “Dossiê Mariana”:

Acontecimento, enquadramentos e responsabilidades (Terezinha Silva)

Omissos, oportunistas e “funcionários do mês” (Gáudio Bassoli)

O alto preço da fatura (Vera França)

Mobilização – Redes de afeto em torno do acontecimento (Marta Maia)

 

Esta análise compõe o “Dossiê Mariana” e faz parte do cronograma oficial de análises para o mês de novembro, definido em reunião do Grislab.

 



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