As análises que desenvolvemos no Grislab partem de uma pergunta básica: quais os sentidos evocados / desencadeados por tal acontecimento? Seguindo este roteiro, estive tentando apreender e compreender o leque de sentidos que cercam a condenação e, agora, a prisão de Lula, no dia 7 de abril de 2018.
Para aqueles que defendem Lula e combatem sua condenação – e o espectro inclui, para além dos petistas e do agrupamento diversificado da esquerda, também democratas e anti-facistas de vários matizes – a prisão significou uma medida arbitrária e autoritária, o pisoteio da lei e da constituição, o ápice do movimento golpista que, desde novembro de 2014, veio se avolumando para a destruição não apenas de Lula, Dilma e do PT, mas da política social que eles representavam.
Do lado oposto, para as classes economicamente dominantes, para os grupos no poder, essa condenação fez parte do projeto de combate ao inimigo, visando impedir a continuidade do governo petista e o retorno de Lula à presidência. Trata-se da conhecida (e antiga) guerra, chamada luta de classes. É bem verdade que eles não foram incomodados no governo Lula, e ninguém perdeu dinheiro. Mas classe é classe. Lula são “os outros”. Então a prisão foi a consumação da vitória que já vinha sendo conquistada desde o impeachment.
Até aí, o jogo e o embate são compreensíveis. Mais desafiante é entender os motivos que levam uma vasta camada de classe média, classe média baixa a adotar uma posição não apenas de combate, mas de ódio extremo ao PT e a Lula. Sabemos que, historicamente, a referência da classe média é a classe alta; que seu grande pavor é a horizontalização, é se igualar à base da pirâmide social. Mas Lula não fez um governo socialista; a classe média foi favorecida com empregos, com abertura de universidades, com aumento de consumo e possibilidade de viagens. Qual é o fundamento desse ódio, e da comemoração eufórica da prisão de Lula? (considerando inclusive que essas camadas vêm sendo duramente atingidas pela destruição econômica provocada pelo golpe?)
E aqui vale lembrar que, em vários momentos da história de nossa civilização, as “massas”, uma parte das massas, estiveram presentes assistindo e se exultando com a derrocada do herói – condenando inocentes e se mostrando indiferente à liberdade dos culpados. Ignorância das massas? Não é a minha leitura. Há muito deixei de referendar explicações simplistas e mecânicas que, ao analisar certas opiniões e posicionamentos das pessoas aparentemente contrárias a próprios interesses, atribuem-nos à sua irracionalidade.
Dois outros tipos de explicações podem ser evocadas. A primeira delas é a tese sociológica de Jessé de Souza, desnudando a substrato profundo da nossa cultura – que não é exatamente a cultura portuguesa, mas a cultura escravista. Quatrocentos anos de uma prática escravocrata ficaram cravados profundamente na mentalidade de nosso povo, a mentalidade do “senhor”, mentalidade que invadia inclusive escravos, desejosos de terem seus próprios escravos. O desejo de ser senhor, o desejo de subjugar, nos evoca Jessé, é espinha mestra da cultura brasileira. É ela que atua quando aplaudimos o espetáculo dos grilhões (em muitos momentos fazendo-nos esquecer que estamos igualmente aprisionados).
Mas podemos também resgatar uma outra linha de interpretação, de natureza psicanalítica. A sociedade capitalista avançada em que vivemos nos subjuga a todos. Ela excita desejos e provoca frustrações; nos convoca a sermos vencedores, e nos derrota. Faz a propaganda de modelos de realização, e nos joga na vala dos comuns. Esse é um jogo perverso e destruidor, que alimenta raiva e ressentimento. Aí, frente ao ressentimento, precisamos de um “inimigo”, senão para culpar, pelo menos para ser alvo do nosso ódio. Dentro dessa chave, canalizar a raiva para Lula ganha sentido. Trata-se da raiva da impotência. Do gozo compensatório dos fracos.
Há dois mil anos, Cristo foi condenado pelos poderosos, por aqueles que se sentiram incomodados e ameaçados com suas mensagens e com o reino que ele anunciava. Mas essa condenação precisou do apoio de uma multidão de impotentes que, frente à pergunta de Pilatos, responderam: solte Barrabás…
Vera França
Coordenadora do GrisLab e Professora Titular do PPGCOM-UFMG