Análise | Poder e Política

1964: não há o que comemorar

O presidente da República, Jair Bolsonaro, autorizou comemorações alusivas aos 55 anos do golpe militar de 1964. O acontecimento gerou as mais diversas reações, despertando revolta e acordando “monstros” adormecidos.

Ilustração: Vitor Teixeira

O Brasil passou 21 anos (1964-1985) vivendo em um regime militar. O golpe dado na democracia do país em 31 de março de 1964 fez com que os direitos fossem usurpados, não havendo eleições diretas para presidente: a perseguição política era cotidiana, a imprensa era calada a todo momento, o Estado prendia, torturava e, em muitos casos, matava seus opositores. Em resumo, a ditadura militar brasileira foi um período sangrento e de trevas na nossa história.

Após o fim do ditatura militar, o país passou pela redemocratização, e, desde então a luta em defesa da memória dos mortos e torturados pelo regime tem sido constante. Repudiar e garantir que a história não se repita sempre foi um trabalho diário para os defensores da democracia. E como forma de resistência, todos os anos, desde o fim do regime militar, pessoas vão às ruas para protestar contra a ditadura, há um trabalho em torno de escrever a história dos torturados e mortos pelo regime, ou seja, há um esforço para que não haja um apagamento desse momento histórico.

Porém, neste ano, na semana anterior à data que foi dado o golpe pelos militares em 1964, o presidente da república, Jair Bolsonaro, fez, através do porta-voz da presidência, uma declaração polêmica e irresponsável, autorizando o Ministério da Defesa e a população a comemorar tal data. A declaração do presidente gerou reações na população e em diversos órgãos e associações de profissionais. De um lado, estavam as pessoas que sempre lutaram para o não esquecimento do período como uma forma de evitar sua repetição, ; de outro, indivíduos que ficaram alheios às discussões e não tomaram nenhum posicionamento, e houve, ainda, quem apoiasse e aplaudisse o incentivo do presidente em comemorar a data.

Também como reação a Bolsonaro, de imediato, o Ministério Público Federal, juntamente com a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e a CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil), lançaram notas de repúdio à fala do presidente, e em defesa da democracia. Além disso,  diversas ações jurídicas foram movimentadas, solicitando o cancelamento da “autorização” para as comemorações da ditadura.

Olhando para o acontecimento e suas reverberações, uma questão vem de imediato: o que levaria um presidente de um país autorizar que se comemore um dos momentos históricos mais sombrios e vergonhosos da nação? Porém, tal atitude vinda do nosso atual chefe de estado não é novidade. Esperar sensatez de um político que faz apologia à tortura, exalta torturadores e incentiva a violência, é no mínimo incoerente. Agora, Bolsonaro pode dificultar a identificação de vítimas da ditadura, mantendo-se fiel ao seu viés ideológico.

Este acontecimento nos faz pensar que, além de sermos governados por um admirador de torturadores, também vivemos em uma democracia frágil, que requer cuidado e que seja defendida. Quando se naturaliza e se autoriza a adoração de momentos históricos como o da ditadura militar, se dá espaço para que monstros, que pensávamos estar mortos, acordem e tragam à tona o retrato de uma parcela da sociedade que é conivente e, em muitos casos, é desconhecedora da nossa história. Acontecimentos históricos como o golpe de 1964 e todos os seus efeitos não podem ser objeto de comemoração.

Lívia Barroso
Doutora em Comunicação pela UFMG e professora da Unifesspa
Membro do Gris



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