Eleita a cantora do ano pelo Prêmio Multishow 2019, Ludmilla, que estreou na cena musical como MC Beyoncé, se consagrou no cenário artístico brasileiro e seus passos são conhecidos e acompanhados pela mídia, por seus fãs e pelos críticos. Mas o que a emergência e permanência dessa celebridade – e o caminho que ela percorreu nos últimos anos – revela sobre o critério desigual com que avaliamos nossos célebres e artistas?
Foi em uma feira em Duque de Caxias (RJ), cidade natal de Ludmilla Oliveira da Silva, que a cantora viu pela primeira vez o DVD de um show da cantora Beyoncé: “Ela cantava e dançava ao mesmo tempo, com aquelas roupas, aquela beleza. Pensei na hora: quero ser isso!”. O encontro rendeu o primeiro nome artístico da cantora, que adotou MC Beyoncé até 2013.
Um dos primeiros sucessos de Ludmilla, ainda como MC Beyoncé, foi a música “Fala mal de mim”, em que a cantora manda um recado para a “recalcada”: “fala mal de mim, mas é minha fã encubada”. Talvez esse seja um verso bastante catártico e ilustrativo para a difícil emergência de Ludmilla, que passou por maus bocados na cena pública para ser levada efetivamente a sério como artista.
O aspecto peculiar é que tais dificuldades não eram por falta de curtidas, alcance ou visualizações. Seu álbum de estreia, “Hoje”, produzido pela Warner Music em 2013, rendeu grandes sucessos como “24 horas por dia”, “Te ensinei certin” e “É hoje”. A própria Ludmilla comentou sobre o retorno positivo em entrevista: “Estou ganhando mais de cinco mil seguidores por dia no Instagram. No Facebook, já está chegando a um milhão de curtidas”. Para os olhos do público, no entanto, Ludmilla ainda era vista como um fenômeno “menor”. Tal sensação pode ter sua origem nos “memes” protagonizados pela cantora, como a famosa resposta que deu a Marília Gabriela para a pergunta “Um medo?”: “Cair da moto e se ralar”; ou a resposta que deu a Fátima Bernardes, quando questionada sobre o que mudou desde a primeira visita ao programa “Encontro com Fátima”: “Mudou tudo né? Antigamente era redondo aqui”.
Mas talvez a insistência em não levar a cantora a sério tenha também a ver com o rigoroso e cruel padrão que mulheres na música popular brasileira – e especialmente mulheres negras no funk – sofrem aos olhos do público hegemônico, que não-dificilmente avalia o trabalho e aparência das cantoras negras por padrões sexistas e racistas. Enquanto Anitta se tornava a representação branca da funkeira “bem-recebida” e aceita pelo público, Ludmilla parecia estar frequentemente ocupando o mesmo lugar de deboche e descaso de grandes nomes femininos do chamado “funk putaria”, como Deise Tigrona, Tati Quebra-Barraco e MC Carol.
Mesmo estando sempre em desvantagem, Ludmilla não desistiu e adotou uma ética quase protestante para sua carreira: transformou sua aparência com cirurgias plásticas, alterou seu som, que se tornou cada vez “mais polido” e menos “sujo”, e se mostrou disposta a tudo para manter suas músicas em evidência.
No entanto, por mais adequada que Ludmilla fosse às regras e leis não-ditas da indústria fonográfica, ela era uma celebridade negra, não havendo estratégia de marketing ou parceria musical que alterasse o fato de que sua fama era construída em um contexto racista e machista. No mesmo ano do lançamento do seu segundo CD, as ofensas racistas que a cantora recebia em sua conta do Instagram a levaram a recorrer à polícia e a ter que comentar na imprensa sobre o racismo cotidiano que sofria.
Se tomamos a Beyoncé norte-americana como um dos maiores símbolos de empoderamento e da música pop da atualidade, a escolha de Ludmilla pelo nome MC Beyoncé soa quase como uma profecia. A cantora finalmente chegou ao pódio e construiu sua própria “liberdade” para cantar e compor sobre assuntos que, talvez no início da sua carreira, ela não se sentia à vontade ou, mesmo, interessada. Vale ressaltar que a dimensão política de Ludmilla nunca foi necessariamente seu posicionamento verbal sobre as questões em pauta, mas o que ela carrega em seu modo de vida.
Seja por ser uma mulher negra em evidência – mesmo recebendo “cantora do ano”, Ludmilla foi vaiada por parte do público e chamada de “macaca” no Prêmio Multishow –, uma funkeira com um gosto desinibido por maconha ou ainda uma celebridade que assumiu publicamente um relacionamento lésbico: isso torna Ludmilla, queira ela ou não, uma das cantoras brasileiras mais políticas da atualidade.
Lucas Afonso Sepulveda, mestre e doutorando em Comunicação na UFMG
Bárbara Lima, mestranda em Comunicação na UFMG