Análise | Poder e Política

De que crise hídrica (não) estamos falando?

Imagem: Folha de Campinas

Imagem: Folha de Campinas

No Brasil, um dos países que concentra 8% da água doce do mundo, há alguns meses a mídia tem noticiado frequentemente informações acerca do que se têm chamado de crise hídrica. A partir do momento que a escassez de água, principalmente na região Sudeste do país, ganhou as manchetes dos jornais, as mais variadas questões tomaram conta das conversas cotidianas. Mas é preciso lembrar que a crise de água no Brasil não é um fenômeno recente, tampouco localizado. Omite-se, por exemplo, o fenômeno da “indústria da seca” no Nordeste e a gestão ineficiente da água em abundância no Norte do país.

No caso do Sudeste, a crise hídrica ganhou dimensão de acontecimento midiático, o que não vemos ocorrer nas demais regiões do país, a não ser a partir dos enquadramentos sobre desperdício e causas naturais. Para tentar acalmar os nervos dos moradores das cidades mais atingidas com a estiagem, os governantes contam com o apoio da mídia, alguns falando da não necessidade de desespero, já que o racionamento seria desnecessário em um primeiro momento, e outros divulgando campanhas de economia de água destinada diretamente, em sua maioria, aos moradores dos grandes centros urbanos. Enquanto os governos e a grande mídia incentivam a economia no consumo doméstico, cabe questionar o que tem sido feito no mesmo sentido pelas indústrias e o agronegócio, dois dos principais segmentos da economia do país que mais consomem água em suas atividades.

Em paralelo às atualizações quase que diárias sobre o nível dos reservatórios de água, os olhares da mídia se voltaram e revoltaram para os mais diversos “abusos” e maus-usos do líquido tão fundamental e precioso. Pensando no desperdício, em 02 de abril de 2015, o Jornal Hoje da Rede Globo noticiou que em um dos estados conhecidos por sofrer com a seca, o Piauí, mais de 700 mil litros de água são desperdiçados por hora em poços no município de Cristino Castro, o que seria suficiente para abastecer 50 cidades, se o projeto de ligação dessa água para a população saísse do papel. Nesse caso, noticia-se o desperdício, enquanto se omite o que é (des)conhecido como “indústria da seca” no Nordeste, em que a seca se torna lucrativa para empresas que fornecem água por meio de caminhões pipa para diversas cidades enquanto os projetos públicos de gestão de água são engavetados ou retardados.

Aliás, falar em gestão de recursos hídricos no Brasil de fato não é algo muito comum. No Norte do país, que possui a maior rede hidrográfica disponível do planeta, a Amazônica, a população também sofre com falta de abastecimento e má qualidade da água fornecida. Nos centros urbanos amazônicos, as companhias de saneamento pecam em gestão e investimentos em infraestrutura, o que resulta no fornecimento de água contaminada ou simplesmente nas faltas periódicas de água nas casas de alguns bairros.

Não precisa nem se afastar muito dos centros urbanos para ver situações ainda mais precárias. As escolas das ilhas localizadas em frente à cidade de Belém do Pará, do outro lado do rio, possuem instalações precárias de abastecimento, retirando a água diretamente do rio, sem devido tratamento. E é essa água que é usada para cozinhar o lanche e o almoço das crianças, e também é oferecida para matar a sede.

Esses casos ilustram o quanto não estamos discutindo as diferentes faces, causas e consequências da crise hídrica no Brasil. Segundo o Mapa de Abastecimento Urbano de Água elaborado pela Agência Nacional de Águas (dados de 2010), 60% dos municípios do Sudeste têm abastecimento considerado pelos estudos como satisfatório. No Sul e no Centro-Oeste, as porcentagens são de 59% e 56% dos municípios, respectivamente. Quando subimos o olhar no mapa, vemos porcentagens ainda mais preocupantes: apenas 43% dos municípios do Norte e 26% do Nordeste têm abastecimento satisfatório. Apesar de os dados precisarem de atualização, são reveladores de que a crise hídrica alardeada no Sudeste é apenas uma ponta do iceberg. Entre campanhas pela economia no consumo e notícias sobre os níveis do reservatório, há muitas omissões que não ajudam para um debate público profundo e ações políticas não apenas pontuais e paliativas.

Lívia Barroso e Suzana Lopes
Doutorandas em Comunicação Social (UFMG)
Pesquisadoras do Gris/UFMG



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