Análise | Especial Poder e Política

Dossiê “Política no Brasil” – O peso e o poder de um cuspe

Um dos acontecimentos mais memoráveis da sessão que aprovou o impeachment na Câmara dos Deputados foi o cuspe que Jean Wyllys (PSOL) direcionou ao adversário político Jair Bolsonaro (PSC) – que, minutos antes, em seu voto, havia enaltecido um torturador da ditadura militar. O cuspe reverberou – mas de que forma os públicos se posicionaram perante este acontecimento? E o que os discursos acerca do cuspe revelam sobre nós e nossa sociedade?

Crédito: Diego Vara / AGÊNCIA RBS / AG. O GLOBO

Crédito: Diego Vara / AGÊNCIA RBS / AG. O GLOBO

No 17 de abril, os brasileiros acompanharam a longa sessão televisionada da Câmara dos Deputados, em que 367 de 511 parlamentares aprovaram o relatório favorável ao impeachment de Dilma Rousseff, repassando-o para o Senado. Muito além da pauta da acusação de crimes de responsabilidade do governo da petista, votos sim eram proferidos em homenagem à pais e mães, esposas e maridos, filhos e netos dos deputados; em nome de Deus, mencionado 58 vezes segundo levantamento do G1; contra a imagem pública de Dilma, Lula e o PT, contra uma “ditadura de esquerda”; pelo crescimento econômico, “pelo amor à bandeira”, “pelo fim da vagabundização remunerada”.

Uma das justificativas mais controversas entre os votos sim veio do deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), que comparou com entusiasmo o golpe militar com o momento ali vivido: “Perderam em 1964 e agora em 2016. […] em memória do coronel Carlos Aberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff!”. O militar homenageado foi comandante do DOI-Codi de São Paulo durante quase quatro anos, num período em que foram registradas 502 torturas e 50 mortes no local. Em 2008, Ustra foi o primeiro militar a ser reconhecido pela Justiça como torturador. Morreu em 2015, durante tratamento de um câncer.

Alguns minutos depois, foi a vez do deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) registrar o seu voto não – e foi aí que surgiu o cuspe. Em relato no Facebook, o único parlamentar abertamente gay da Câmara alegou que, após o seu voto, “o deputado fascista viúva da ditadura [Jair Bolsonaro] me insultou gritando veado, queima-rosca, boiola e outras ofensas homofóbicas, e tentou agarrar meu braço violentamente na saída. Eu reagi cuspindo no facista.” Jean justificou seu ato, afirmando que o cuspe era o mínimo que merecia alguém que vangloria um torturador e que cospe diariamente nos direitos de gays, lésbicas e trans e mulheres. Bolsonaro, por sua vez, se defendeu, afirmando que não ofendeu o adversário político na votação e que, por conta do cuspe, pretendia ir ao Conselho de Ética da Câmara contra Wyllys. Um vídeo publicado na Internet, no dia seguinte à votação, nos revela uma cena mais completa do ocorrido: parece improvável que Bolsonaro tenha puxado o braço de Wyllys, como alegou o deputado do PSOL, por conta da distância entre os dois; mas, de fato, o militar o agrediu com xingamentos homofóbicos durante sua fala, sim. Outro detalhe que não recebeu tanta atenção e é revelado pelo vídeo: o filho de Jair Bolsonaro, o também parlamentar Eduardo, cospe de volta em direção à Jean Wyllys.

Como o cuspe de Wyllys se reverbera? Para entendermos como este acontecimento mobilizou sujeitos afetados e foi, por eles, enquadrado, me direciono aqui aos comentários de notícias do Estadão, UOL e Folha. Os discursos encontrados nos portais revelam facetas muito pertinentes para a compreensão deste acontecimento:

Uma das principais condenações ao cuspe de Jean é justificada pela quebra de decoro parlamentar. “Esse deputado ex-BBB deveria ser cassado por quebra de decoro parlamentar. […] a discordância e a provocação fazem parte do jogo político, mas quando chega a agressões físicas perdem a razão de ser”, escreve uma usuária no UOL. O ato, desta forma, é visto como uma agressão física, que não deve ser permitida em uma sessão em que se espera “civilidade”, e, portanto, deve ser punida. Por sua vez, o discurso de Jair Bolsonaro, ao valorizar a figura de um militar responsável por centenas de torturas e dezenas de mortes, não seria uma violência – em seu caráter discursivo, mas não menos agressivo – e, portanto, também uma quebra da “civilidade” esperada pelas figuras políticas? Vale, aqui, lembrar do histórico de agressões e quebras de decoro parlamentar de Bolsonaro.

É preciso ressaltar que, ainda nos comentários dos portais, há uma clara manifestação contrária às afirmações e à figura de Bolsonaro: “[…] homenagear um notório torturador é comportamento de escória, e esse bolsanaro representa o que [há] de mais atrasado e estúpido existe neste país”, escreve M.T. na notícia da Folha. Mesmo quando um usuário condena a ação de Jean Wyllys, isto não parece o impedir de ver com olhos semelhantes a agressão movida por Bolsonaro em seus proferimentos.

Outro fator importante, constantemente convocado pelas reverberações: o passado de Jean Wyllys no programa Big Brother Brasil (em 2005) é, com frequência, usado como argumento para deslegitimá-lo em seu exercício político: “Esse deputado acha que está no BBB para dar chilique”; “Ela ainda acha que está no BBB. Quem votou nele deve repensar seu voto”; “Primeiro BBB, depois se encosta no governo. E ainda se acha o dono da razão”. Estes discursos compartilham uma visão de que a política não está reservada para figuras da mídia e entretenimento, celebridades e célebres anônimos. No entanto, há de se perguntar: a fama midiática de alguém significa automaticamente uma incapacidade ou “ignorância” política?

Por fim, precisamos nos atentar para os significados intrínsecos ao cuspe. Segundo o relato do Jean Wyllys, o ataque foi uma reação aos insultos homofóbicos – veado, queima-rosca, boiola – ditos por Bolsonaro, durante o voto do parlamentar do PSOL. O próprio partido de Wyllys confirmou que o político do PSC “sempre se aproxima do Jean e começa a insultá-lo com termos homofóbicos e palavras de calão.” O cuspe adquire um peso simbólico muito maior quando o inserimos em um contexto de agressões contínuas e possíveis hostilidades vividas por um único deputado assumidamente homossexual, em uma casa em que bancadas conservadoras e evangélicas ganham cada vez mais força.

A homofobia, portanto, deve ser uma chave de leitura para este acontecimento, que se relaciona não só com o desrespeito e insultos sofridos dentro da Câmara, mas com as violências cotidianas vividas por LGBTs e a luta por reconhecimento e proteção legal, tão ameaçados, destes grupos.

 

Lucas Afonso Sepulveda
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social-UFMG
Pesquisador do Gris

 

Esta análise faz parte do Dossiê “Política no Brasil”, previsto em cronograma oficial de análises para o mês de maio, definido em reunião do GrisLab.

Confira as demais análises do Dossiê:
– Climão no Faustão: a crise política e o posicionamento das celebridades (Fernanda Medeiros e Maíra Lobato)
A herança maldita de Cunha (Gáudio Bassoli)



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