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Eleições presidenciais na Bolívia: entre golpe, tentativas e resposta popular

A vitória em primeiro turno do Movimento ao Socialismo (MAS) na Bolívia, cerca de um ano após a renúncia compulsória de Evo Morales, sinaliza uma reação do país às tentativas de golpe e investidas internacionais na soberania boliviana, além de certa autonomia de setores progressistas diante da liderança de Evo.

Luis Arce (ao centro) e David Choquehuanca (à direita) celebram a vitória em 19 de outubro de 2020, em La Paz. Foto: Ronaldo Schemidt / AFP

Cerca de um ano atrás, em novembro de 2019, Evo Morales, indígena aymara, ex-líder sindical cocalero, presidente da Bolívia por três mandatos consecutivos (2006-2019) e recém-eleito para um quarto mandato, teve que renunciar, pressionado pela oposição e a “pedido” dos militares. Exilou-se no México e, após sua renúncia, Jeanine Áñez, então senadora de oposição e segunda vice-presidenta do Senado, se autoproclama presidenta do país, apoiada por setores conservadores da sociedade boliviana. O governo brasileiro foi um dos primeiros a reconhecer a presidenta interina.

Agora, as esquerdas boliviana e latino-americana comemoram a vitória de Luis Arce nas eleições presidenciais da Bolívia do último dia 18 de outubro. Candidato do Movimento ao Socialismo (MAS) apoiado por Evo Morales e ex-ministro da Economia e Finanças Públicas da sua gestão, Arce tem perfil técnico, com trânsito entre a classe média e a Academia. Já o vice-presidente, David Choquehuanca, tem perfil semelhante ao de Evo: é indígena aymara, ex-dirigente sindical da Confederação Sindical Única de Camponeses da Bolívia, exerceu o cargo de chanceler da sua gestão e é apontado como peça-chave na proeminente vitória eleitoral.

Embora a vitória nas urnas esteja confirmada desde o dia 19 de outubro, o Brasil era o único vizinho da Bolívia que, até o dia 23 (sexta), não havia cumprimentado a chapa boliviana pelo resultado. Após a proclamação oficial do resultado na noite da sexta, entretanto, o Itamaraty emitiu uma nota felicitando Luis Arce e David Choquehuanca pela vitória e afirmando disposição em trabalhar com as novas autoridades bolivianas.

A renúncia compulsória de Evo em 2019 foi denunciada por setores da esquerda como golpe, legitimado pela Organização dos Estados Americanos (OEA), que disse em relatório parcial de auditoria haver indícios de irregularidades nas eleições. O relatório, entretanto, foi contestado por estudos independentes posteriores. Exilado no México e depois na Argentina, Evo Morales denunciou reiteradamente ter sido vítima de um golpe de Estado que teve os Estados Unidos como cúmplice, por causa da nacionalização dos recursos minerais e da restrição da exploração do lítio por empresas transnacionais na Bolívia (um dos maiores depósitos de lítio do mundo, concentrado no Salar do Uyuni) promovidas e sustentadas no seu governo. Declaração recente do bilionário estadunidense Elon Musk, dono da Tesla Motors, que produz carros elétricos movidos a bateria de lítio, vai na direção da denúncia de Morales: em julho deste ano, ao ser questionado no Twitter sobre a participação dos EUA no processo que levou à queda do ex-presidente com o objetivo de se apropriar mais facilmente das reservas de lítio da Bolívia, ele responde: “Vamos dar golpe em quem quisermos. Lide com isso”. Após a vitória da chapa de esquerda na Bolívia, a hashtag #ChoraElonMusk, lançada por brasileiros, viralizou no Twitter e ficou entre os assuntos mais comentados na plataforma no dia seguinte às eleições.

Como já apresentado na análise Temporalidades e perguntas em torno da crise na Bolívia, o país viveu, em 2019, uma grave crise política em virtude das contradições que marcaram a tentativa de reeleição de Evo Morales para um quarto mandato. Tais contradições renderam críticas de aliados importantes, bolivianos e de outros países da América Latina, como o ex-presidente Lula, que disse à época que Evo cometeu um erro ao tentar um quarto mandato, mas foi vítima de um golpe criminoso e “terrível para a América Latina”.

Ainda que passível de críticas e marcada por contradições, a gestão de Evo Morales cumpriu um papel importante no resgate da soberania, dignidade e autoestima de um país marcado pela desigualdade e que conta com mais de 60% de sua população indígena. Como relata o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, o governo de Evo, sobretudo o primeiro (2006-2010), promoveu transformações substantivas na Bolívia, como a redução drástica da pobreza, do analfabetismo e da taxa de desemprego.  Ao mesmo tempo, a vitória de uma chapa que, embora apoiada por Evo, não tinha o seu nome à frente e nem a sua presença no país como cabo eleitoral, sinaliza certa independência e autonomia do partido e dos setores progressistas diante de uma liderança forte, que conseguiu se reeleger por quatro vezes seguidas.

Muito se especula sobre o quanto a direita do país se conformará com o resultado das últimas eleições, que, a propósito, aconteceriam em maio, mas foram adiadas várias vezes, o que também gerou protestos e foi lido pela esquerda do país como mais uma tentativa de golpe dos que não aceitavam a iminente vitória do MAS nas urnas, já sinalizada pelas pesquisas e pelo aceno popular. Diante da recente história boliviana e latino-americana, é possível, sim, que as elites locais, com apoio externo, invistam em nova tomada de poder à força. É também possível, porém, como indica o especialista em constitucionalismo latino-americano Gladstone Leonel Jr., que a vitória do MAS inspire na região uma resistência capaz de reverter golpes de Estado. A ver como a história se desdobrará.

Cecília Bizerra Sousa, jornalista, doutoranda em Comunicação (UFMG) e pesquisadora do Gris



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