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Maldita benção!

A repercussão do terço abençoado pelo Papa Francisco e entregue ao ex-presidente Lula em Curitiba revela como a nossa era também pode ser a da desinformação.

Juan Gabrois, consultor do papa, não autorizado a visitar Lula na prisão. Foto: Claudio Kbene.

Antes do “prende-solta”, sobre a história do terço abençoado pelo papa e entregue a Lula, comecemos pelo “final”:  o relato de quem trouxe o objeto para o ex-presidente e que acabou não sendo autorizado a visitar o preso. Estamos falando do advogado argentino Juan Grabois, Consultor do ex-Pontifício Conselho Justiça e Paz (que passou a fazer parte do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral) e coordenador do Encontro Mundial dos Movimentos Sociais em diálogo com o Papa Francisco. Destacamos o trecho a seguir (mas vale ler o post na íntegra):

“Em meados de maio estive no Vaticano para visitar o Francisco, que me honra com uma amizade que eu não mereço, ama a pátria grande e – como ele mesmo indicou – está preocupado com a situação atual. Como você sabe, é muito claro e frontal, não precisa de porta-voz e eu nunca fingi ser. Eu sofro muito quando a mídia me coloca nesse lugar. Eu apenas tento ajudar no diálogo com os movimentos sociais. […]

Por esses dias de maio, meus amigos dos movimentos populares do Brasil me ofereceram a possibilidade de te visitar. Fiquei muito contente […]. Aproveitei, então, aquela visita ao Vaticano para conversar com o papa sobre a situação e pedir-lhe um rosário abençoado para levar-te a vós. Assim foi. É incrível que um gesto tão simples de solidariedade e proximidade do papa, um objeto que serve para rezar, gere tantos problemas, mas não é a primeira vez e Vatican News é responsável por ter permitido que se publique essa nota tão inapropriada.”

De fato, o Vatican News fez um desmentido de um desmentido, publicando duas notas de esclarecimento. A segunda nota sobre o caso alegou “imprecisões na tradução e nas transcrições que induziram a alguns erros” na primeira. Diferente da antecessora, a nota posterior não se refere a Grabois como “ex-consultor”, nem como agindo “em caráter pessoal”, tampouco apresenta o trecho “terços como esse são levados a tantos prisioneiros do mundo sem entrar no mérito de realidades particulares”. Ou seja, a primeira nota retira de certa forma a legitimidade da visita de Grabois enquanto porta-voz de votos do papa Francisco, situando-a enquanto de caráter pessoal – o que levou as agências de checagem a carimbar de “falsa” a informação da visita conforme noticiada por alguns sites.

Parte da grande mídia (por exemplo Folha, Veja, G1) preferiu repercutir a primeira nota, nem se dando ao trabalho de constatar a existência da segunda. As agências de checagem, por sua vez, tiveram outra postura. Após a segunda nota oficial, a Lupa optou por alterar a etiqueta inicial aplicada na notícia do terço, “falsa”, para “de olho” (o que passou um atestado de pressa, confiança ingênua na fonte oficial e suscitou mais uma crítica entre tantas outras às agências de checagem). Os sites E-farsas e Aos Fatos foram atualizando as informações a cada capítulo da trama, mas mantiveram o primeiro selo.

Começamos do final e estamos chegando ao começo da polêmica: logo após Grabois ser impedido de visitar Lula em Curitiba, o argentino afirmou em espanhol, durante entrevista coletiva na porta da PF, que o terço havia sido abençoado pelo papa. Na tradução simultânea da entrevista, um assessor do PT repassou aos jornalistas que o rosário havia sido “um presente do papa” – título de algumas manchetes e conteúdo de postagens posteriores na página do facebook de Lula, no site do PT e em portais noticiosos como Brasil 247. A nova política do Facebook (empresa abalada pelo escândalo da sua relação com a Cambridge Analytica nas campanhas do Brexit e de Trump)  rendeu ameaças de restrição do conteúdo destes posts – pois, como vimos, agências de checagem parceiras da rede social negavam a informação (com base na primeira nota do Vatican News).

Afinal, o terço é ou não um presente enviado por Francisco a Lula? A resposta pode ser uma cômoda e evasiva constatação da dificuldade de comprovação. Mas o diabo mora nos detalhes. O consultor pedir o terço ao papa tem um significado muito diferente do papa enviar um terço via consultor. Na primeira situação (que teria ocorrido), é Grabois que tem papel ativo enquanto o papa tem papel coadjuvante, enquanto na segunda (que pode ser conjecturada levando em conta como outros terços abençoados chegaram a “presos políticos” na América Latina, mas que contradiria o relato de Grabois), é Francisco quem age por meio de seu consultor. (Também o termo “assessor”, usado algumas vezes para se referir a Grabois em determinadas postagens, pode sugerir uma proximidade formal maior do que a de um consultor; um papel de porta-voz que o próprio advogado se nega a assumir, ainda que seja amigo pessoal do papa.) O relato de Grabois reforça que o presente é dele, não de Francisco.

Sendo assim, ainda que se possa (ou se queira?) imaginar o papa constrangido a não assumir um presente para Lula, o PT, a assessoria de Lula e portais noticiosos ideologicamente próximos também agiram mal no trato das informações, especialmente depois da publicação da carta de Grabois. Dar a entender algo diferente do que foi verificado não é uma postura inédita do partido e de alguns de seus simpatizantes: basta lembrar da criação da paradigmática frase (que ninguém disse) “não temos provas, mas temos convicção”; do uso de perfis falsos na campanha eleitoral; da associação do Joaquim Barbosa com a impunidade do mensalão tucano (logo o ex-ministro que foi voto vencido no STF contra a manobra de Eduardo Azeredo buscando protelar sentença). Se total objetividade e “Verdade com letra maiúscula” não existem, isso não nos autoriza a ser coniventes com interpretações muito convenientes dos fatos, mesmo em contextos de mal-entendidos e fortes disputas ideológicas. Pelo contrário, vítimas de fakenews deveriam ser as primeiras a não produzir e reproduzir notícias falsas, que sugiram interpretações equivocadas ou precipitadas. Não, não vale tudo, ou não deveria valer tudo…

O boato e a interpretação rasteira sempre existiram. O que observamos neste caso mais uma vez é como as mesmas mudanças tecnológicas que facilitaram produzir, checar e publicar conteúdo relevante também permitiram que mentiras e meias verdades se espalhem com muito mais eficiência. A nossa demanda por informação imediata nos ambientes virtuais inclusive estimula a produção de conteúdo que peca seja por falta de zelo, seja por má fé. As chamadas novas mídias são assim. Uma benção maldita.

Gáudio Bassoli
Mestre em Comunicação Social pela UFMG e Apoio Técnico do GrisLab



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