Análise | Poder e Política

O acontecimento Lula

Francisco Proner / Farpa Fotocoletivo

5 de abril de 2018, quinta-feira: é meu aniversário e, no entanto, o clima que paira no ar não é o de festa. O julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Supremo Tribunal Federal estava concluído, com o placar de 6 a 5 a favor da prisão antes do trânsito em julgado. O resultado não soou como surpresa, apesar de alguns lances desconcertantes: o voto de Gilmar Mendes, que até então se mostrava contrário ao pedido de habeas corpus, e o de Rosa Weber, que relatou ter votado de acordo com o entendimento da maioria, embora sua atuação como ministra fosse divergente até então (com previsão de divergência em um futuro próximo, na votação das Ações Declaratórias de Constitucionalidade).

Menos de 20 horas depois, o juiz Sergio Moro decretou a prisão de Lula. O ex-presidente deveria se entregar à Polícia Federal em Curitiba até as 17h da sexta-feira (06). A mídia, em todo seu espectro, não falava de outra coisa. Da TV Globo ao Twitter, todas as pautas pareciam girar em torno de duas palavras: Lula preso.

Cada hora daquela sexta-feira foi vivida com tensão, como se o Brasil estivesse disputando uma final de Copa do Mundo contra si mesmo. Não importava qual fosse o resultado final; a essa altura, milhares sairiam da partida levando para casa mais uma derrota. O acontecimento da prisão de Lula era, então, marcado pela ansiedade e pela dor de uma cisão no corpo social brasileiro: uns a favor, outros contra.

Muitos foram às ruas demonstrar sua vontade política por todo o Brasil. De um lado, alguns acreditam no combate à corrupção, tendo como símbolo a prisão inédita de um ex-chefe de Estado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. De outro, uma militância inquieta e atônita com a queda da presunção de inocência, artigo 5º da Constituição. À margem, os desinteressados e/ou isentos. No meio de tudo: Lula.

Recolhido no Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo, junto a lideranças de movimentos sociais, do Partido dos Trabalhadores (PT) e outros partidos de esquerda, ele resiste ao mandado de prisão e declara que não se entrega. Os públicos que se formaram em torno do acontecimento de sua prisão se inflamam, intensificando seus clamores. A multidão do lado de fora do sindicato ganha número com a chegada de caravanas de todo o Brasil, somando-se ao fechamento de mais de 40 estradas pelo Movimento dos Sem Terra. Lula passa mais uma noite no mesmo prédio que o acolheu durante a histórica Greve do ABC em 1979, a qual rendeu-lhe sua (primeira) prisão.

Assisto incrédula, porém ciente de estar testemunhando um grande acontecimento: a profusão de sentidos é intensa e a demarcação de um presente que nos conecta ao passado ao mesmo tempo que projeta um futuro – ainda que incerto – é patente.

07 de abril de 2018, sábado: Lula negocia sua prisão e decide se entregar após a missa em homenagem à sua falecida esposa, Dona Marisa Letícia, que faria 68 anos naquele dia. Ele, enfim, discursa não apenas para a multidão presente, mas para todo o Brasil. Em rede nacional e através de vários canais de transmissão ao vivo pela internet, Lula vem a público consolidando-se como a figura pública carismática que é, puxando fios da memória política brasileira e tecendo-os habilmente diante de nossos olhos. Lula se entrega, mas consegue demarcar seu legado e passá-lo adiante, trazendo à frente do palco seus sucessores políticos da esquerda: Guilherme Boulous, Manuela D’Ávila e Fernando Haddad.

Seu discurso comove, causando arrepios de admiração e de repúdio, a depender do ouvinte. Lula desce do palco carregado pelos braços do povo, literalmente, até o Sindicato dos Metalúrgicos. A foto tirada pelo jovem fotógrafo Francisco Proner repercute por todo o mundo, desde a capa da minha própria página no Facebook até à do jornal francês Le Monde. Finalmente, me dou conta que o acontecimento que estava presenciando desde a véspera do meu aniversário não era mais apenas a prisão de Lula, mas ele mesmo: Lula aconteceu.

Considerá-lo um acontecimento nos permite enxergar não apenas sua trajetória pública, mas nos remete a nossa história. Evoca a fragilidade de nossa jovem democracia, relembra tempos igualmente sombrios da ditadura civil-militar e do fracasso de nossa Comissão da Verdade em condenar torturadores. O Lula-acontecimento recapitula os avanços e tropeços de seus governos e de Dilma, lançando luz mais uma vez sobre eles, para que possamos debatê-los, deliberar e aprender politicamente. Por fim, ao acontecer e fincar seu lugar na História, Lula indica um futuro próximo conturbado para um Brasil esperançoso, porém mal resolvido com suas próprias feridas.

Maria Lúcia de Almeida Afonso
Mestranda em Comunicação pela UFMG e Pesquisadora do GrisLab



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