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O mecanismo de Padilha

A operação Lava Jato se desdobra em vários campos da sociedade. As investigações que dividem a sociedade brasileira ganham um espaço na mídia antes não tanto explorado: o do entretenimento. Neste lugar, os limites entre ficção e realidade são colocados à prova.

José Padilha, diretor de Tropa de Elite, Narcos e O mecanismo. Foto: Divulgação.

Lançada no dia 23 de março deste ano, a série O mecanismo é a mais nova produção nacional da produtora audiovisual e serviço de streaming Netflix. A série é descrita por seus criadores como uma “obra de ficção inspirada livremente em eventos reais”. “Personagens, situações e outros elementos foram adaptados para efeito dramático”, diz uma tela que é repetida ao começo de cada episódio. A série também é inspirada pela a obra “Lava Jato – O juiz Sérgio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil”,  escrita pelo jornalista Vladimir Netto.

A trama começa em 2003, com o escândalo do Banestado, no Paraná (que, na realidade, se deu anos antes). No primeiro capítulo, é tudo preto no branco: os policiais federais são os heróis. Os bandidos, uma gangue caricata que acaba escapando pelos dedos dos mocinhos graças à burocracia e a má vontade do Ministério Público. Nos próximo episódios começam a apresentar de fato a operação Lava Jato.

Instituições que existem no mundo real tiveram seus nomes alterados na série. O PT (Partido dos Trabalhadores), leva o nome de “PO” (Partido Operário); a Petrobras vira “Petrobrasil”; e a empreiteira Galvão Engenharia passa a chamar-se “Bueno Engenharia”. O mesmo acontece com as personagens. Dessa forma, a personagem que representa a ex-presidente Dilma Rousseff foi batizada de “Janete Ruscov”; Michel Temer vira “Samuel Thames”, e a delegada Erika Marena é representada por “Verena Cardoni”. O que seria a representação do ex-presidente Lula é chamado de “José Higino”. O mesmo ocorre com os doleiros Alberto Youssef (“Roberto Ibrahim”), Carlos Habib Chater (“Chebab”), e Nelma Kodama (“Wilma Kitano”).

Devido a esses paralelos um tanto grosseiros (ao ponto de serem até risíveis), a série foi alvo de várias críticas por parte da esquerda e até mesmo de pessoas de centro, no que se refere ao descompromisso com o factual. Críticas essas com alguma semelhança àquelas feitas à série Narcos, do mesmo diretor, José Padilha. A célebre frase “estancar essa sangria”, proferida pelo senador Romero Jucá (MDB), foi atribuída ao ex-presidente José Higino (Lula) na trama. O doleiro Ibrahin (Youssef) é visto andando livremente no comitê de campanha da presidenta  Janete (Dilma). Essas e outras distorções fizeram aparecer até a proposta de um boicote à Netflix, solicitando o cancelamento dos assinantes que não concordam com a narrativa. Não sem motivo: boa parte dos brasileiros sabem distinguir a “liberdade criativa” dos roteiristas e a trama real que viu nos noticiários (de certa forma, mais emocionante do que a sussurrada por Selton Mello), mas como ficam os estrangeiros que consumirem a série sem outras referências mais verossímeis? E a quem interessa essa representação parcial em ano eleitoral?

A marginalização do PT e seus representantes, tanto como a tentativa de mostrar apenas o Ministério Público como problemático no aparato judiciário brasileiro, soa intencional. A trama mostra apenas um político da direita, Aécio Neves (Lúcio Lemes), sendo que a parte mais fiel ao mundo real em O Mecanismo é apostar que, se Lemes ganhasse, a investigação iria acabar.

É prometido uma segunda temporada com um enfoque maior para outros políticos e partidos envolvidos no escândalo. Os “isentões” de plantão afirmam até que na próxima temporada, sem data e confirmação pela Netflix, o boicote vai ser proposto pela direita. Há boatos que o foco vai ser o Golpe de 2016 à presidenta eleita Dilma Rousseff. Por ora, quem ainda tiver paciência para a “realidade de mentirinha” – o mecanismo com o qual Padilha conta suas histórias -, deve aguardar os próximos capítulos. Literalmente.

Paulo Basílio
Mestrando em Comunicação pela PUC Minas e Apoio Técnico do GrisLab



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