Foi preciso que quatro atletas estadunidenses forjassem um assalto à mão armada para a altivez da nação brasileira renascer. Até que ponto o verde da grama do vizinho nos interessa?
Em meio a uma alarmante crise econômica, um cenário político instável e muitos baldes d’água, a tocha olímpica atravessou o país até chegar à pira, que se manteve acesa durante 17 dias. A Olimpíada foi, sem dúvida, um acontecimento. Basta dizer que a ideia de um megaevento que demanda esforços de organização e reorienta a rotina de um amplo grupo social já ilumina, por si só, uma das abordagens possíveis desse conceito.
No entanto, é preciso levar em conta a dimensão do acontecimento que escapa ao que foi planejado. Não era incomum esperar que algumas coisas saíssem do script durante as Olimpíadas, justamente pela falta de confiança no sistema político e a descrença na capacidade do país em sediar um evento de tal porte. O que não se previu foi que os acontecimentos dissonantes pouco tinham a ver com a organização dos jogos olímpicos.
Um desses casos foi alvo de críticas negativas no mundo inteiro. A situação envolveu quatro nadadores estadunidenses e mobilizou larga cobertura midiática. Tudo começou no dia 13 de agosto, quando os atletas Ryan Lochte, Jimmy Feigen, Gunnar Bentz e Jack Conger foram a uma casa noturna para comemorar as vitórias que tiveram nas provas em que competiram. Os problemas começaram a aparecer quando, naquela madrugada, Lochte telefonou para a mãe informando que ele e os outros três amigos haviam sofrido um assalto após saírem da festa onde estavam. Alarmada, a mãe do rapaz acionou a imprensa que divulgou a notícia de imediato. No dia seguinte, Lochte foi a público contar que os assaltantes armados tinham levado 400 dólares, mas deixaram seu celular e as credenciais das Olimpíadas.
Neste primeiro momento, debateu-se sobre o imaginário de país da bagunça e da violência urbana que já era anunciado antes do início dos jogos olímpicos. Para o público e a mídia, que até então não tinham encontrado episódios exemplares para criticar a segurança pública do Rio de Janeiro durante os jogos olímpicos, o suposto assalto era um prato cheio.
Não demorou muito para a investigação colocar a validade do depoimento de Lochte e dos demais nadadores à prova. Imagens de segurança de um posto de gasolina registraram a confusão entre os atletas e os funcionários do estabelecimento, que alegaram que os nadadores haviam depredado um dos banheiros do posto. O que se seguiu à investigação foi o confisco do passaporte dos nadadores – Bentz e Gonger receberam os passaportes de volta, mas Lochte e Feigen foram indiciados por falsa comunicação de crime. Feigen foi liberado para voltar aos EUA mediante o pagamento da multa de R$ 35 mil. Lochte, que já havia voltado para casa antes de ter o passaporte retido, assumiu a mentira e deve ser novamente intimado a depor, já que não conseguiu se livrar das pendências com a justiça brasileira.
Essa reviravolta arrebatou de surpresa uma nação que há muito gastava o discurso de “aqui no Brasil nada funciona”. O acontecimento rompeu com o imaginário de terra sem lei que ganhou força diante dos casos de corrupção e dos processos políticos que vêm pautando a cobertura midiática nos últimos anos. De repente, as piadas, conversas e previsões feitas em relação à violência urbana do Rio de Janeiro deram lugar a uma torcida que se fez ouvir e que, na ausência de atletas brasileiros, torcia pela delegação desacreditada ou a mais pobre.
A mentira dos nadadores foi forte o bastante para revelar a pluralidade do complexo povo brasileiro. O brasileiro é aquele sempre pragueja contra o próprio país, mas questiona o imperialismo cultural quando a mídia gringa critica o seu jeito de torcer ou reclama do biscoito Globo vendido nos estádios. Brasileiro é o povo que não poupa palmas nem vaias, seja para atletas ou para o presidente golpista.
Filipe Monteiro
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social-UFMG
Membro do Gris
Esta análise faz parte do cronograma oficial de análises para o mês de setembro, definido em reunião do GrisLab.