Alguns acontecimentos ocorrem num determinado tempo e espaço, e continuam “acontecendo” enquanto seus ecos e reverberações ainda se fazem ouvir. Outros são datados. É o caso do acontecimento que vou comentar: a vinda do papa Francisco ao Brasil provocou um grande impacto, e passou. Por que, então, retomá-lo ainda assim – e na abertura de nosso laboratório? A resposta é simples (e espero que convincente…). Esse acontecimento teve um caráter exemplar.
Inicialmente, não resta dúvida de que a visita foi um acontecimento. Embora programada e esperada, ela surpreendeu pelo alcance que atingiu. A presença do papa convocou a atenção de todos os brasileiros; por onde passou (e sobretudo no Rio, na abertura da Jornada da Juventude), multidões se aglomeraram para vê-lo (e ouvi-lo?); a mídia cobriu intensivamente a visita – ele fez falar, e ao longo dos dias sua figura dominou a pauta das conversações cotidianas, e todos acharam algo que dizer. Além do que, o tom positivo foi unanimidade.
Não se trata aqui de retomar os fatos, mas de tentar compreender as razões dessa repercussão e de uma tal unanimidade.
Existem diversas formas de acontecimento. Algumas ocorrências o são por suas características intrínsecas (a morte de uma celebridade, por exemplo); outras por aquilo que provocam (um cataclismo). Algumas, ainda, pela capacidade que instituem de promover costuras e abrir possibilidades num determinado momento. É o caso deste acontecimento. A visita de um papa, e mesmo deste papa, não provocaria tanta sensação em qualquer momento.
Do ponto de vista do catolicismo, sua presença ganha força pelo sopro de esperança que ele traz: num contexto de crise da Igreja Católica, escândalos no Vaticano, impotência e renúncia do papa anterior (além de sua “dureza”), o papa Francisco se torna depositário do desejo de grande parte da população mundial (e não apenas dos fiéis) de restabelecimento do equilíbrio de uma das instituições ainda mais poderosas do planeta. Sem dizer que o Brasil continua um país majoritariamente católico.
Mas, naturalmente, as características deste papa são peculiares, e foram altamente propícias – e valorizadas – no atual contexto brasileiro. Estamos saturados pela ganância e abusos de poder; Francisco demonstra desapego e humildade. Num momento de ostentação, ele surpreende pela modéstia e informalidade. Minimizando o campo doutrinário, ele retoma o Evangelho (a palavra original). E, como Jesus (e como São Francisco), faz opção pelos pobres, e prega a ação social. Que melhor lugar poderia ocupar um papa senão este, ao lado dos “pequeninos”? Tal atitude suscita não apenas o apoio das forças progressistas, que aspiram por uma Igreja engajada, mas também das forças políticas hegemônicas – que veem com bons olhos essa forte instituição se ocupando das vítimas do sistema (desde que não ultrapasse certos limites).
Como terceiro aspecto, essa visita ocorre num momento singular: ela se situa exatamente na sequência das manifestações, e encontra o país de pernas para o ar. Jovens pelo Brasil afora, aos milhares, tomam as ruas e pedem mudanças. Não há uma pauta específica, não há uma liderança forte, apenas raiva, desejo, energia transformadora. O papa aparece como um líder suave, compreensivo, que apoia a juventude nas ruas, e propõe substituir a raiva pelo amor.
Em Minas, ouvi a tese de que a vitória do Atlético na Copa Libertadores acalmou a massa… e esvaziou as manifestações. Arrisco o palpite de que a visita do papa se alimentou da energia que pairava no ar e nas ruas, e ajudou a dissipá-la. No final, teria atuado como um fecho (não por sua própria força, mas como resultado da conjunção estabelecida).
Foto: Tânia Rego – Agência Brasil
Vera V. França
Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG
e coordenadora do Gris/UFMG
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Comentário
A visita do papa ao Brasil aconteceu e passou. Mas podemos extrapolar isso e pensar na dimensão acontecimental do próprio Papa Francisco, como uma figura pública, para além de sua participação na Jornada Mundial da Juventude. Nesse sentido, como uma celebridade-acontecimento, o papa continua acontecendo e, como tal, afetando a vida das pessoas. E de que maneira ocorre essa afetação? Através dos valores que ele encarna, que foram destacados no texto acima: a humildade, a simplicidade, a solidariedade, o desapego. São valores que participam da construção da imagem pública de Francisco e ajudam a compreender a força dessa personalidade na contemporaneidade.
Paula Guimarães
Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG
e pesquisadora do Gris/UFMG
Trata-se de um Papa menos reacionário, com agenda aberta, que propõe mudanças na condução de uma instituição poderosa na história da humanidade, mas quero ressaltar o que escreveu Vera: a figura do Francisco surge em virtude de seus gestos midiatizados chamados pela mídia de “quebra de protocolo”. Tais atitudes diante das câmeras do mundo surgem valorizadas e “altamente propícias no atual contexto brasileiro”. Quer dizer, a figura do Papa faz sentido quando lida na relação com o ambiente saturado pela ganância e abusos de poder no Brasil. Desapego e humildade na relação com um momento do parecer ser, da exacerbação do indivíduo e sua economia de auto-estima. Modéstia e Ostentação; formalidade/informalidade; o alto (chefe de Estado) que se curva, reverenciando o baixo (os pobres, jovens e idosos).
Essa questão apontada pelo Nísio é muito difícil de ser respondida agora. Só o tempo, com as posturas assumidas pelo próprio Papa e pela Igreja Católica, poderá nos dizer. Mas arriscaria afirmar que pelos posicionamentos assumidos por Francisco até agora, há sim mudanças na condução da Igreja (a saber o quão profundas elas, de fato, serão).
A questão da Marta é importante, precisamente porque a mudança de Papa e a visita do mesmo parece sugerir uma agenda um pouco mais “aberta”: o comentário papal sobre o homossexualismo, ainda no voo de volta, seu apreço por outros vínculos midiáticos, como os times de futebol, raros na figura do líder católico, de fato o aproximam mais deste agendamento por uma abertura em prol dos valores citados por Paula ou efetivamente ações normais em momento inicial de mudança que podem não ser tão profundas assim,voltando ao apontamento de Marta?
A Igreja Católica, como uma das instituições mais reacionárias da história, necessita de renovação. Parece-me que esse novo Papa conseguiu perceber esta necessidade; ao menos tem demonstrado interesse em se abrir para novas ideias. Entretanto, a Igreja continua a lançar documentos (como o Manual de Bioética para jovens e a última Encíclica) que condenam o uso dos anticoncepcionais bem como a reafirmam a heteronormatividade, entre outros. Resta saber se as declarações midiáticas do Papa alcançarão, na prática, mudanças nas orientações indicadas pelos documentos oficiais.