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Quem erra ou silencia seus mortos?

Como saber o real cenário do combate ao Covid-19 no Brasil se falta transparência e sobra confusão na comunicação e nas ações do poder público? A suspensão das entrevistas coletivas diárias do Ministério da Saúde, o desrespeito aos profissionais da imprensa e a outros profissionais que atuam na linha de frente configuram ataque aos direitos dos cidadãos e à democracia.

Desde que foi confirmado no Brasil o primeiro caso de Covid-19, em fevereiro, muito se fala no achatamento da curva de contágio. Mas como saber o real cenário se falta transparência e sobra confusão na comunicação e nas ações do poder público? As entrevistas coletivas diárias do Ministério da Saúde, por exemplo, chegaram a ser suspensas quando o novo líder da pasta, Nelson Teich, tomou posse, em 17 de abril. Olhar no olho do cidadão, neste caso por meio da imprensa, é fundamental para orientá-lo sobre os cuidados que devem ser seguidos e prestar-lhe contas.

Países europeus, que também lutam contra os efeitos do Covid-19, assumiram o compromisso de manter o diálogo com a população. Na Espanha, o coordenador-geral do combate à pandemia concede entrevistas coletivas diárias para atualizar as informações, inclusive assumindo erros e, por vezes, desculpando-se. No Brasil, profissionais da imprensa, que cotidianamente assumem riscos para informar as pessoas sobre o mundo que as cerca de modo que possam orientar suas ações e tomar decisões de forma consciente, têm sido relegados, antes mesmo da pandemia, a um lugar de desprezo e ridicularização nos arredores do Palácio do Planalto.

Em meio ao descaso aos profissionais e à informação, o Ministério da Saúde alegou erro de digitação nos dados relativos a São Paulo para divulgar, na segunda-feira (20), 383 mortes em 24 horas em vez das 113 contabilizadas. No mesmo dia, ao ser questionado por um jornalista sobre a quantidade aceitável de brasileiros mortos pelo novo coronavírus para defender a abertura de escolas e do comércio, o presidente da República, Jair Bolsonaro, limitou-se a dizer: “Eu não sou coveiro”.

Lidar de perto com a morte é tarefa difícil, que exige muita responsabilidade, mas tem sido encarada por coveiros e profissionais de saúde, não raras vezes, sem a proteção necessária. E quanto aos trabalhadores da imprensa? Com que proteção podem contar contra o desrespeito e até as ameaças, como em episódios recentes repudiados por entidades ligadas à categoria, entre elas a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)?

É preciso lembrar que muitos veículos e profissionais que reclamam do tratamento que lhes é dispensado pelo atual governo apoiaram explicitamente ou por omissão o então candidato à presidência da República. No entanto, tal histórico não ameniza o caráter antidemocrático dos ataques ao jornalismo e aos jornalistas, que resvalam no direito dos brasileiros à informação.

Em um contexto de erros de digitação, subnotificações e flagrante desrespeito a profissionais da saúde e da imprensa, torna-se ainda mais pertinente a recente publicação do ex-presidente da Fenaj Celso Augusto Schröder, nas redes sociais: “como no tempo da ditadura nunca saberemos exatamente o número de mortos. Restarão as covas rasas para serem vasculhadas nas próximas décadas”. Se os jornalistas não tiverem assegurado o direito de exercer a atividade, seremos impedidos de saber muito mais que isso.

Thais Araujo, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da UFSC e bolsista da Capes



Comentários

  1. Carmen Pereira disse:

    Hoje, Dia do Trabalhador, é muito oportuno a leitura da análise de Thais Araujo. Os jornalistas precisam fortalecer suas entidades de luta, como FENAJ e Sindicatos, para o enfrentamento a onda de ataques que a direita vem promovendo. Juntos somos mais fortes.

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