Análise | Esportes

Somos todos paralímpicos?

Uma campanha sobre as Paralimpíadas gerou polêmica ao manipular a imagem de dois atores sem deficiência para simular as deficiências de dois atletas paralímpicos. A recorrência de recepções contrárias a esse tipo de proposta aponta para uma crise da representação não só de pessoas com deficiência, mas de diversas minorias.

 

Certos acontecimentos podem ser pensados segundo a lógica dos terremotos. Um mesmo epicentro faz surgir uma série de abalos com efeitos em lugares distintos. Esses abalos podem ser consequência não apenas de ocorrências isoladas, mas de problemas de uma época, paradigmáticos. Às vezes, não evidenciam algo que ninguém conseguia ver, mas trazem à tona o que alguns já vinham há tempos tentando demonstrar.

Com a proposta de promover as Paralimpíadas, a renomada agência África fez a campanha Somos Todos Paraolímpicos  para a revista Vogue, alterando a imagem dos corpos de Cléo Pires e Paulinho Vilhena para simular as deficiências dos atletas Bruna Alexandre e Renato Leite. A recepção da campanha foi polêmica.

 

paralimpicos

Nossa época, junto com seus discursos sobre o politicamente correto, traz consigo uma crise da representação. A Internet tem fervilhado dia sim dia não, em diferentes círculos, por causa de temas que dão a ver esse problema público. Neste ano, por exemplo, houve o caso de Paulo Gustavo interpretando uma mulher negra e o de Cauã Reymond interpretando uma mulher trans.

Os sujeitos contemporâneos demandam o direito de serem protagonistas de suas próprias histórias. As “minorias” fazem-se ver, tornam-se barulhentas, tomam para si o direito de significar aquilo que lhes diz respeito. O privilegiado perde o direito de falar pelo outro supostamente legitimado  por sua boa intenção.

Somos todos paraolímpicos, se paralímpicos não são quaisquer uns? As dores e prazeres de ser paralímpico e, antes, de ser uma pessoa com deficiência, é uma experiência de quem o é. Não estaríamos então tirando um mérito de pessoas com deficiência e ainda nos ofendendo por não terem aceitado felizes um enquadramento imposto externamente?

Há algumas décadas, a prática do black face, que significa pintar o rosto de preto, era feita com frequência por atores brancos para representar personagens negros. Ainda hoje, a imensa maioria das personagens transexuais são feitas por atores cissexuais, e a de personagens com deficiências (como cegos e cadeirantes), por atores sem deficiência. Mesmo que a intenção da representação hoje possa ser boa, e não ridicularizante, seria ela legítima? Não seria melhor para cumprir esse propósito dar espaço a transexuais e pessoas com deficiência, que hoje não ocupam quase nenhum espaço de visibilidade, como os negros ainda vêm a duras penas tentando ocupar?

Todos podemos e devemos refletir sobre essas questões. Mas a hermenêutica desse acontecimento, juntamente com as absolvições ou condenações da proposta, não pode ser dada por pessoas sem deficiência: quem define se algo ofende ou são os ofendidos. É preciso levar em conta essa máxima do respeito à diversidade, especialmente quando a alegada intenção por trás da interação é a de dar apoio a uma minoria.

Vanrochris Vieira
Mestre em Comunicação Social pela UFMG
Professor da Universidade Vale do Rio Doce

Pesquisador do Gris/UFMG



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