Análise | Diário da Quarentena Poder e Política Questões raciais

Visibilidade tardia da população negra nos dados oficiais da Covid-19

Os números de pessoas infectadas pela Covid-19 com o recorte cor/raça só passaram a ser incluídos nas notificações do Ministério da Saúde a partir de 10 de abril, um mês e meio depois da confirmação do primeiro caso da doença no país, após pedido da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. A visibilidade tardia desses dados mostra que o vírus não nos iguala, mas escancara nossas chagas historicamente varridas para debaixo do tapete.

4ª Marcha das Mulheres Negras em Copacabana, no Rio de Janeiro, protesta contra a violência que atinge as mulheres negras em todo o país. Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil

Uma senhora de 74 anos com histórico clínico de hipertensão e cardiopatia; uma jovem de 22 anos que já estava internada para tratamento oncológico; uma comerciante de 38 anos. Essas são algumas pessoas cujas mortes pela Covid-19, em diferentes cidades brasileiras, foram noticiadas em portais jornalísticos nos últimos dias. Pelos relatos publicados não é possível saber se são brancas ou negras. Até o dia 10 de abril, um mês e meio depois da confirmação do primeiro caso da doença no Brasil, sequer havia dados oficiais de pessoas infectadas com o recorte cor/raça no país. Tal informação passou a ser incluída nas notificações enviadas pelos estados ao Ministério da Saúde a partir de então, após cobrança de mais de 150 entidades do movimento negro que compõem a Coalizão Negra por Direitos e também pedido da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade

A entidade, que reúne médicos atuantes em postos de saúde e outros serviços de atenção primária, enumera diversas razões pelas quais é fundamental que se conheçam esses números. Entre elas, destacam-se as seguintes: 67% dos cidadãos brasileiros que dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS) são negros (pretos e pardos); a maioria dos pacientes com Diabetes Melittus, Tuberculose, Hipertensão Essencial Primária e doença Renal Crônica, que configuram grupo de risco para Covid-19, também é formada por negros, assim como a maioria dos trabalhadores informais e dos que atuam nos serviços essenciais do país, que apresentam dificuldade em cumprir o isolamento social

É certo que o mundo foi surpreendido pela gravidade e pela velocidade de propagação do vírus e os governos de diversos países precisaram se apressar em tomar medidas para lidar com uma nova e assustadora realidade. Mesmo assim, como compreender tal invisibilidade inicial nos números oficiais do Brasil se há razões tão fortes para tê-los de forma explícita?

Uma explicação pode ser o fato de que toda a desordem causada pela pandemia não cria, mas escancara nossas chagas históricas, muitas vezes varridas para debaixo do tapete por autoridades e setores influentes da sociedade que não têm qualquer interesse em alterar as estruturas que as mantêm. Há quem diga que o vírus nos iguala, mas ele aprofunda ainda mais as desigualdades. Num contexto de retirada de direitos e precarização das condições de trabalho, os efeitos da pandemia não nos alcançam da mesma maneira. Os primeiros a serem atingidos são aqueles que já haviam sido empurrados para a informalidade, não tinham acesso à saúde e à escolaridade, vivendo à margem de qualquer suporte efetivo do poder público. 

Isso se evidencia quando verificamos uma maior letalidade entre pessoas negras, embora o número de autodeclaradas brancas com a doença seja superior.  Conforme demonstra o último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, 54,7% das hospitalizações ocorre entre pessoas de raça/cor branca, que chegam a 47,7% dos óbitos; já as hospitalizações entre pessoas negras é de 43,1%, mas os óbitos chegam a 50,1%. 

Se almejamos sair desta crise um pouco melhores é preciso encararmos com muita responsabilidade os desafios urgentes da defesa prática dos direitos humanos e isso significa fazermos opções políticas comprometidas, entre outras coisas, com o combate ao racismo estrutural. Isso se reflete na igualdade de direitos e promoção da vida digna — trabalho, moradia, saúde, educação etc. Por se tratar de uma agenda extensa, ela precisa ser construída pela via coletiva.

Thais Araujo, jornalista, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da UFSC e bolsista da Capes



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