Análise | Diário da Quarentena Poder e Política Questões raciais

Você sabe com quem está falando?

Em meio à pandemia, uma figura típica do Brasil se revela: o cidadão de “bens”. Diferente da maioria dos brasileiros, ele tem muitos direitos, mas foge dos deveres. Seu poder aquisitivo, sua profissão ou a cor da pele são motivos suficientes para que ele justifique seus privilégios.

Na abertura dos bares no Rio de Janeiro, um casal sem máscara confronta um fiscal da Vigilância Sanitária. Para intimidá-lo, eles usam a profissão, como fator de diferenciação: “Cidadão não, engenheiro civil. Melhor do que você”. Em Santos, um desembargador que caminhava na praia sem máscara também se apropria do cargo para se colocar acima da lei. Além de ofender o guarda municipal, chamando-o de analfabeto, Eduardo Almeida Prado Rocha Siqueira liga para o secretário de Segurança Pública do município para reclamar da abordagem. Ao final, rasga a multa, joga no chão e se retira do local sem a máscara. 

Longe de ser um acontecimento isolado, a “carteirada” é um artifício muito usado no Brasil para escapar de penalidades ou obter vantagens. Em um contexto de pandemia, muitos cidadãos de “bens” têm usado sua profissão ou status social para desrespeitar o isolamento e as regras estabelecidas. 

Outro comportamento comum a este típico cidadão é colocar o outro em um lugar de servidão. Quantas empregadas domésticas não continuaram trabalhando durante a pandemia? Um dos casos mais emblemáticos foi o de Mirtes, que perdeu o filho, ao deixá-lo por alguns minutos aos cuidados da empregadora. Sarí, como mostramos em análise anterior, não se sentiu responsável pela vida e nem pela morte de Miguel. 

Mais recentemente, um entregador do iFood – profissão extremamente precarizada no país – foi humilhado por um contador, morador de um condomínio de luxo do interior de São Paulo. O homem se sentiu à vontade para ofender e humilhar Matheus Pires Barbosa, de 19 anos, por um atraso. A profissão, a condição financeira e cor do rapaz foram usadas para depreciá-lo. Para tentar explicar a atitude do contador, a família alegou que ele é esquizofrênico, o que não justifica o comportamento racista e recorrente do contador, que será investigado por injúria racial.  

Longe de serem comportamentos isolados, a “carteirada”, a desconsideração com a vida do outro, a cobrança por atitudes de servidão, o racismo revelam um problema muito mais amplo e enraizado no país: a consolidação de uma elite que não rompeu com a herança escravista e continua a desprezar a dor e o sofrimento dos mais pobres, que não são reconhecidos como detentores dos mesmos direitos dos quais ela se beneficia. Tal distinção não só continua sustentando privilégios e o lugar de poder econômico e ideológico da elite, como justifica as faltas impostas aos pobres, como as péssimas condições de emprego e moradia, a baixa qualidade do ensino e do atendimento nos hospitais, o apoio ao encarceramento em massa e à violência policial.  

No entanto, como os casos analisados demonstram, se antes o cidadão de “bens” se escondia em seu cargo, poder aquisitivo ou posição social para intimidar, agora, com as câmeras de celular, é possível obter provas e denunciar. Principalmente nas redes sociais, vozes de descontentamento e de contestação alertam não só para gravidade de tais atitudes – que precisam ser denunciadas e desnaturalizadas – como também contribuem para pressionar os órgãos competentes a tomarem atitudes legais e exigir que o cidadão de “bens” assuma as consequências de seus atos ou que pelo menos passe pelo constrangimento de se explicar publicamente.

Fabíola Souza, professora substituta no Departamento de Jornalismo da UFOP e pesquisadora do Gris



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