No dia 28 de janeiro de 2017, São Paulo assistiu ao apagamento do maior painel de grafites da América Latina, com cerca de 5km de extensão na av. 23 de maio. Neste painel estava também um mural de 1.000 m² feito por Eduardo Kobra em 2009, no aniversário da cidade, mostrando a capital paulista entre os anos 1920 e 1930. A prefeitura foi a responsável por transformar o que havia de colorido da cidade em mais cinza. Ironicamente, ao chegar ao aeroporto de Guarulhos, os turistas se deparam com uma mídia indoor da própria prefeitura de São Paulo que diz “São Paulo é arte urbana”, enquanto mostra muitos murais famosos que serão apagados.
Já havia sido também anunciado o apagamento dos grafites nos Arcos do Jânio, feitos em 2015 com autorização do então prefeito Fernando Haddad (PT). A remoção de arte urbana é parte do programa “Cidade Linda”, criado pela gestão do novo prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB), para supostamente fazer manutenção e recuperar elementos da paisagem urbana da cidade [1].
O lançamento do programa ocorreu já no primeiro dia da nova gestão. Na ocasião, Doria e seus secretários vestiram uniformes de garis e posaram para a imprensa. Nas redes sociais, contudo, a ação foi considerada demagógica e a repercussão teve um tom de deboche e ironia [2]. O programa parece derivar da Lei nº 14.223, de setembro de 2006, conhecida como Lei Cidade Limpa [3] e instituída pelo então prefeito Gilberto Kassab. Entre suas ações, a mais famosa foi a retirada de centenas de outdoors pela cidade [4], além do apagamento de escritas urbanas, como grafites e pixações, como mostrado pelo filme Cidade Cinza (2013), de Marcelo Mesquita e Guilherme Valiengo.
Não é de hoje, então, que o poder público de São Paulo se mostra pouco interessado em dialogar e conhecer melhor as expressões que fazem das ruas e do mobiliário da cidade o seu suporte. Muitas das ações que, em um primeiro momento, podem parecer uma abertura a novas formas de entendimento dessas expressões, acabam por soar muito mais como tentativas de contenção e controle. Alguns exemplos são o Museu Aberto de Arte Urbana de São Paulo [5] (criado após a prisão de 11 grafiteiros por pintarem de forma não autorizada os mesmos pilares que, posteriormente, teriam apoio e patrocínio para grafitarem) e o convite feito a alguns pixadores para participar da Bienal de Arte de São Paulo de 2010 (dois anos após a invasão da edição anterior do mesmo evento por dezenas de pixadores [6], que se tornou caso de polícia).
Doria, enquanto apaga os grafites, promete criar áreas reservadas para grafiteiros e muralistas credenciados, que receberão cachê, em um projeto que se inspira no distrito de Wynwood, em Miami [7] (que, inclusive, conta com trabalhos de vários grafiteiros brasileiros). Enquanto isso, a polêmica sobre os apagamentos repercute em ações e discussões, on e offline. O bloco paulistano de Carnaval Acadêmicos do Chorume lançou a marchinha Me grafita que eu to bege [8], que canta versos como “Lá vem, lá vem, lá vem/ Lá vem Doriana e sua broxa / Pintar tudo de cinza/ Ai que prefeito mais ranzinza/ Mas que chato de galocha”.
De outro modo e longe do bom humor carnavalesco, as ações (re)abriram a porta para o reforço da distinção entre pixação e grafite e, com ela, da distinção entre seus atores como vândalos e artistas [9]. Esse também não é um entendimento novo e vem desde o aparecimento das duas expressões no Brasil: a primeira, ligada às periferias; a segunda, trazida por artistas plásticos inspirados pelo que surgiu em Nova York na década de 1970. É curioso, contudo, que é a pixação, e não o grafite, que mais se assemelha aos primórdios do graffitti nova-iorquino, que também consistia em assinaturas feitas em spray.
No dia 14 de fevereiro o apagamento higienista foi retomado, acompanhado de uma decisão judicial que proibiu que a prefeitura apague grafites espalhados pela cidade sem a autorização do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental de São Paulo [10]. O conflito entre executivo e judiciário foi um dos muitos desdobramentos que ainda surgirão.
Até quando uma cidade linda será entendida como uma cidade asséptica, de pessoas que transitam, trabalham, moram, mas não experimentam, se encontram, se aglomeram, deixam marcas? Talvez, até quando a gestão de uma cidade se confunda com o controle das vidas que a habitam, dos fluxos que lhe dão ritmo, das marcas que lhe dão cores.
Ana Karina Oliveira
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG
Pesquisadora do Gris
Tamires Coelho
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG
Pesquisadora do Gris