As execuções da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes desafiam a intervenção federal militar no Rio de Janeiro em três frentes: a de um crime que acontece na cidade que tem servido de “laboratório para o Brasil”, a do assassinato que vitimou uma opositora da medida e a do silenciamento de uma voz que denunciava abusos de agentes de segurança. A política pública já falhou, e pagou-se com sangue por isso.
Quase um mês depois de Michel Temer assinar o decreto de intervenção no Rio de Janeiro, dando um protagonismo para membros das Forças Armadas na política administrativa do Brasil que não se via desde os tempos da ditadura militar, os assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes jogaram luzes sobre alguns aspectos sombrios da (des)medida. O “laboratório para o Brasil”, nos termos do interventor federal, general Braga Netto, vacila.
Em artigo para a revista Cult (que vale a pena ler na íntegra), o professor Wilson Gomes foi preciso: “o assassinato acontece justamente no Rio e no contexto de um ‘laboratório’ de combate ao crime excogitado pelo governo Temer, que recorreu à medida extrema e sem precedentes de nomear um interventor militar para assuntos de crime urbano. (…) Não é à toa que todo o governo Federal foi mobilizado antes do fechamento das edições dos telejornais da noite seguinte à execução, para mostrar o seu empenho para elucidar o crime e punir os responsáveis: (…) sabe que a política pública em que aposta a maior parte das suas fichas acabou de subir no telhado. Assim, precisará mostrar resultados neste caso ou perderá completamente o argumento”. Acrescentamos: tentar desassociar-se tende a não dar certo.
Marielle era relatora da Comissão da Câmara de Vereadores do Rio criada para acompanhar a intervenção federal na segurança pública. Poucas horas antes de ser assassinada, enviou artigo para o Jornal do Brasil (leia na íntegra): “o apontamento das favelas, como lugar do perigo, do medo que se espraia para a cidade, (…) coloca a favela como objeto principal e inimiga pública”. Nesse contexto, é perigosíssimo experimentar, por exemplo, mandado coletivo – sim, coletivo – de busca e apreensão. Marielle avisa: “o que vemos é que neste ‘laboratório’ as cobaias são os negros e negras, periféricos, favelados, trabalhadores. A vida das pessoas não pode ser experimento de modelos de segurança.”
As “cobaias” vêm sentindo na pele efeitos colaterais do experimento. Os abusos não precisam de ordens do interventor para acontecer, eles podem sequer ser iniciativa do Exército. Porque, se as favelas são “inimigas públicas”, a violência está legitimada. Em Acari, como denunciado por Marielle dias antes de ser morta, moradores alertam que o 41º Batalhão de Polícia Militar do Rio de Janeiro, o “batalhão da morte”, aumentou a ofensiva contra civis depois da intervenção.
Pior: há uma sensação de que os traficantes do varejo fugiram e voltarão à ativa quando o Exército retornar para casa (e vale lembrar resultado de inquérito dizendo que traficante de atacado é o piloto, não os donos de helicóptero). Sendo assim, as Forças Armadas estariam nas ruas não tanto para realizar prisões, mas para prevenir a violência, garantir alguma “paz”. Falharam: mesmo que os verdadeiros assassinos de Marielle sejam descobertos (esperamos e cobramos isso), isso não vai trazê-la de volta. As ideias da vereadora vivem mais do que nunca, mas ela foi brutalmente tirada de nós.
Gáudio Bassoli
Mestre em Comunicação Social pela UFMG e Apoio Técnico do GrisLab