O cancelamento do convênio com os médicos cubanos buscou se justificar em questões de trabalho e competência. No entanto, as relações de trabalho não eram diferentes das que regem cooperativas médicas, e a presença dos médicos cubanos junto a populações desassistidas foi altamente positiva. As razões, portanto, foram ideológicas. Uma medicina humanitária não foi bem vinda entre nós.
O Brasil todo assistiu à saída dos médicos cubanos do programa Mais Médicos e do país, com o cancelamento do convênio que havia sido estabelecido com Cuba em 2013, através da intermediação da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), instância ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS).
Havia aqui 8.332 médicos cubanos (metade dos médicos inscritos no programa), presentes em 2.857 municípios. Estavam inseridos em regiões periféricas, atendendo populações de baixa renda. Foram alocados sobretudo em municípios onde médicos brasileiros não se dispuseram a trabalhar, atendendo populações que até então não contavam com nenhuma assistência médica. Mais do que apontar as consequências dessa intervenção lamentável do presidente eleito (há que se pensar, por exemplo, nas populações indígenas, que ficarão completamente desassistidas), é interessante identificar os diferentes sentidos que envolvem a questão, bem como discutir os argumentos que foram acionados para justificar a medida. Um primeiro argumento acionado seria a falta de qualificação desses médicos, que não teriam que passar por um exame de revalidação de seu diploma pelas instituições brasileiras. Esse aspecto foi respondido pelo tempo: não apenas as prefeituras dos municípios atendidos se mostraram claramente satisfeitas com seu desempenho, como pesquisas junto a grupos atendidos pelos cubanos indicaram alto grau de satisfação. Na lista de denúncia de erros médicos ao longo dos cinco anos dessa experiência não constou nenhuma denúncia de médico cubano. Importante também lembrar que esse programa de assistência médica é coordenado por uma agência pública de Cuba que atende dezenas de países no mundo todo. Ou seja: o Brasil não foi uma cobaia, e o que se julgou que não era bom para nós é bom para muitos – inclusive países europeus. Cuba é uma referência em atenção médica e medicina preventiva. Um segundo argumento é o regime de trabalho e baixa remuneração dos médicos cubanos. Para o presidente eleito, tratava-se de “trabalho escravo”. Não vamos considerar a (des) preocupação de grande parte da classe política com o trabalho escravo no Brasil, com os baixos salários dos trabalhadores brasileiros, e o contraste com o preço das consultas médicas e a expectativa salarial dos médicos brasileiros. Apenas é importante que a sociedade seja melhor informada sobre a natureza da instituição cubana que contratou o serviço com o governo brasileiro. De fato, apenas 30% do valor pago a Cuba é repassado ao médico, que adere voluntariamente ao programa e recebe ainda casa e comida. Sua família é assistida em Cuba; ele mantém seu salário quando volta e até que se engaje em outro programa, e tem sua aposentadoria garantida. O restante dessa renda é aplicado na formação de outros médicos. Lembrando também que esse contrato de 30 e 70% para o médico e para a instituição contratante, respectivamente, é o mesmo esquema utilizado pela Unimed, entre outras empresas de assistência médica. Havia ainda a denúncia ideológica. O convênio seria para financiar Cuba, para trazer “soldados” cubanos para o Brasil. A simples observação do que se passou nesses cinco anos desmente essa fábula inconsistente. Ao mesmo tempo, falas de campanha e os empecilhos colocados por Bolsonaro que levaram ao cancelamento do convênio mostram bem qual ação teve motivação ideológica. O rompimento aconteceu independente de qualquer circunstância negativa relativa ao desempenho profissional dos médicos cubanos. Por simples razão ideológica: Cuba não. Finalmente, um outro sentido, este também ideológico. Cuba desenvolveu uma medicina social, voltada para a prevenção e para o cuidado das famílias. Uma medicina de sentido humanitário, que contrasta muito claramente com a ideologia monetária que orienta majoritariamente a classe médica brasileira. Difícil aceitar, é um modelo perigoso. Vera França |