Discursando em Brasília para o Congresso Nacional e, depois, dirigindo-se ao povo brasileiro, Bolsonaro priorizou o eixo de combate a uma ideologia que teria mergulhado o Brasil na maior crise de sua história. A crítica é genérica, a uma ideologia difusa. Em contraposição, ele não apresenta metas, mas se vê imbuído de uma missão restauradora, em nome da ideologia do livre mercado e da competição. Que vença o mais forte.
No dia 1 de janeiro de 2019 tomou posse o novo presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro. Após ser oficialmente empossado, Bolsonaro discursou duas vezes, dirigindo-se ao Congresso Nacional e depois, já enfaixado, ao povo brasileiro *.
Seus pronunciamentos não diferiram de suas falas enquanto candidato mas, considerando a nova situação, ganham um novo peso, indicando o posicionamento e as diretrizes eleitas pelo agora presidente.
O eixo dos discursos é bastante simples, e se encaixa no modelo messiânico (a vinda do salvador): o país vive uma situação de desestrutura e caos, surge alguém com a missão de fazer a restauração. Aliás, é bem esta a expressão que ele usa – “missão de restaurar e reerguer nossa Pátria” -, atendendo ao “apelo do povo” e sob as bênçãos de Deus (no segundo discurso, dirigido à Nação, as expressões povo, brasileiros, voz das ruas aparecem cinco vezes, e seis vezes a palavra Deus).
A restauração se apoia, entretanto, menos em um plano de metas do que na ênfase àquilo que se combate – a ideologia, palavra citada diretamente oito vezes (quatro em cada um dos discursos). Essa ideologia tão maléfica se constitui em um amálgama de aspectos: gênero, defesa de bandidos, viés nas relações internacionais. Embora genéricas e díspares (esse discurso não especifica exatamente quais são essas concepções, e como elas se articulam em um todo), essas “ideologias” são reconhecidas como um conjunto corrosivo: elas dividem o povo brasileiro e minam nossos valores, destroem a família. Quais são esses valores, e de que família ele está falando não é explicado, mas tomado como consensual.
O resultado desse comando ideológico, que governou o país “atendendo a interesses partidários que não do povo brasileiro”, “conduziu à maior crise ética, moral e econômica de nossa história”. Dados e fatos não são citados para exemplificar este grande mal, mas a imagem de uma grande crise justifica a missão: libertar a Pátria do “jugo da corrupção, da criminalidade, da irresponsabilidade econômica e da submissão ideológica”, “libertar do socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”. Estes são conceitos complexos, porém de qualquer maneira que se tome, o Brasil está longe do socialismo. Também seria necessário especificar o que está dentro e está fora do “politicamente correto” que deve ser descartado – seria o combate ao racismo, por exemplo?
Apelando a um consenso tácito, o discurso presidencial se isenta da necessidade não apenas de especificar suas críticas, mas de justificar suas graves acusações -de destruição do país, de atentado à ética e aos costumes, e inclusive de tentativa de assassinato – “quando os inimigos da ordem, da pátria e da liberdade tentaram por fim à minha vida”, ele diz.
Lamentavelmente, o presidente se apoia num senso comum raso e em chavões de um conservadorismo arcaico – o anticomunismo da era da guerra fria, a defesa de um modelo abstrato de família (o modelo seria a configuração da família Bolsonaro?). Ecoando acusações irresponsáveis e perversas à Educação no Brasil e ao trabalho dos educadore/as, Bolsonaro se assume como porta-voz de uma “vontade soberana daqueles brasileiros que querem boas escolas, capazes de preparar seus filhos para o mercado de trabalho e não para a militância política”.
Em contraposição ao perigo que ele combate não há um programa de metas nem diretrizes de ação, mas elementos de uma outra “ideologia” que não é apresentada como tal (ideologia é a do inimigo): livre mercado, competição, eficácia, direito de propriedade e de legítima defesa por parte do cidadão de bem.
Essa ideologia não fala em trabalho nem em trabalhador, não fala em miséria e redução da pobreza, em saúde, condições de vida, defesa da mulher, combate às exclusões, respeito a diferenças. Não nomeia quem serão os parceiros nas relações internacionais(este, porém, vêm sendo nomeados em outras falas, e se resumem a Estados Unidos e Israel).
O povo, os brasileiros aos quais ele se dirige são as “pessoas de bem”. Quem são esses, e quem são as pessoas do mal? Um discurso de palavras de ordem busca inflamar os ouvintes isentando-se de mostrar seus fundamentos. Porém uma leitura das ênfases e das ausências diz muito de seu pano de fundo. Pessoas do mal são aquelas que não concordam com a nova ideologia proposta; pessoas do mal são aquelas que não estão presentes no novo cenário que ele quer construir e, por isto, não são mencionadas em seu discurso – como os pobres, as minorias, os marginalizados.
Vera França
Coordenadora do GrisLab e Professora Titular do PPGCOM-UFMG