A não obrigatoriedade do pagamento do DPVAT insinua a repetição de um padrão clássico da política brasileira: a tomada de decisões políticas importantes para punir desafetos ou beneficiar aliados políticos e a inevitável vulnerabilização dos segmentos mais pobres da sociedade.
Uma Medida Provisória assinada pelo presidente da república em novembro deste ano retira a obrigatoriedade do pagamento, a partir do dia 1º de janeiro de 2020, do seguro obrigatório de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre, o famoso DPVAT. A justificativa do governo foram os altos índices de fraudes, reclamações e o custo para administração e fiscalização do seguro.
De contratação obrigatória por todo brasileiro que possua veículo automotor, o pagamento do seguro DPVAT é feito anualmente e tem a finalidade de indenizar as vítimas de acidentes de trânsito no Brasil, independentemente de quem seja a culpa.
Uma parte significativa do recurso – 45% – é destinada ao Sistema Único de Saúde (SUS), que faz o atendimento de grande parte de casos graves de acidentes de trânsito e que, em 2018, teve mais de 2 de bilhões de reais no orçamento aportados pelo seguro.
Além do impacto no financiamento da saúde pública – que, segundo o governo, será compensado – a extinção do seguro DPVAT pode comprometer gravemente a assistência imediata a vítimas e famílias de vítimas de acidentes de trânsito, uma vez que apenas 30% dos veículos no país conta com a cobertura de seguros não obrigatórios. Em síntese, sem o DPVAT, os outros 70% serão obrigados a contratar os seguros oferecidos pelo mercado ou simplesmente não estarão protegidos. Considerando os altos índices de acidentes e o fato de que é com o dinheiro do DPVAT que as famílias conseguem cobrir as despesas urgentes com os remédios, tratamentos médicos e os funerais das vítimas, os efeitos da medida podem ser imediatos e, mais uma vez, sentidos principalmente pela população mais pobre.
Outros dois elementos chamam a atenção e permitem conferir outros sentidos à decisão do governo. O primeiro é que a medida atinge diretamente os negócios de Luciano Bivar, presidente do Partido Social Liberal (PSL), sigla que abrigou o presidente Bolsonaro até o mesmo novembro em que a MP foi editada, quando Bolsonaro anuncia a saída do partido após desentendimentos com Bivar, dono de uma das empresas intermediárias do pagamento de indenizações do seguro DPVAT. O segundo é que Salim Mattar, dono da maior empresa de aluguel de carros do Brasil, a Localiza, e quarto maior doador da campanha presidencial de Bolsonaro, é também o secretário especial de Desestatização, Desenvolvimento e Mercados do Ministério da Economia.
Visto que é pago anualmente e que o valor para carros individuais e motocicletas é relativamente baixo em comparação ao valor de um veículo, a não obrigatoriedade do pagamento do seguro proporciona uma economia quase irrelevante ao bolso de proprietários de carros e motos particulares. Já para proprietários de grandes frotas a economia pode ser significativa.
A medida, portanto, segue a lógica neoliberal da gestão de Bolsonaro de enfraquecer o Estado e destinar à iniciativa privada a resolução de questões sociais relevantes. Mas também insinua a repetição de um padrão clássico da política brasileira: a tomada de decisões políticas importantes para punir desafetos ou beneficiar aliados políticos, prejudicando inevitavelmente os segmentos mais vulnerabilizados da sociedade. Por se tratar de Medida Provisória, o Congresso tem até 120 dias após a publicação no Diário Oficial da União para decidir pelo veto ou aprovação. Que prevaleça o bom senso.
Cecília Bizerra Sousa, jornalista, doutoranda em Comunicação pela UFMG e pesquisadora do Gris