Gestores têm demonstrado resistência para evitar a propagação do vírus entre reclusos e acabam assinando medidas que se distanciam da realidade de brasileiros encarcerados e legitimam suas vidas como menos importantes.
As condições desumanas a que pessoas privadas de liberdade são submetidas no Brasil são visíveis e naturalizadas. Diante da pandemia ocasionada pelo novo coronavírus, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, tem tomado medidas que se distanciam da realidade das unidades carcerárias e demonstra resistência para realizar ações efetivas que evitem a infecção de milhares de reclusos, trabalhadores do sistema penal e seus familiares.
Moro disse que “não podemos soltar presos e pôr em risco a população” e que a epidemia ainda não teria chegado aos presídios. Desde então, o monitoramento dos sistemas prisionais sobre a Covid-19, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), mostra que há pelo menos 74 casos de pessoas privadas de liberdade com suspeita de coronavírus pelo país, além de casos de um agente penitenciário e um recluso confirmados, o que tem sido relativizado ou negado pelo ministro.
Também têm sido analisadas causas de óbitos nas prisões nesse período. Mortes sem sinais de violência têm sido classificadas como natural ou desconhecida, mesmo que o preso tenha apresentado problemas respiratórios, entre outros sintomas do novo coronavírus.
Uma das primeiras portarias assinada por Moro e pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, fala sobre a separação física de 1,5m entre os presos e assepsia nos espaços comuns. No entanto, o Depen aponta que existem 752.277 pessoas privadas de liberdade, para apenas 460.750 vagas nas unidades prisionais, inclusive 248.929 presos provisórios. Os dados mais recentes são desatualizados, referentes ao início de 2019, mas mostram que é impossível implementar esse tipo de medida em um sistema que, além de ser o 3º mais populoso do mundo, está absurdamente superlotado.
Falta de espaço, de ventilação, água racionada ou não encanada (a exemplo de Roraima, estado com maior superlotação carcerária do país), inútil para consumo ou higienização, montam o cenário carcerário do Brasil. Muitos reclusos vivem sem acesso a serviços de saúde e têm HIV/Aids (138 vezes mais recorrente que entre outros brasileiros), pneumonia, hipertensão e tuberculose, entre outras doenças que os colocam em grupos de risco.
Muitas das visitas levam produtos básicos de higiene, medicação e alimentação, serviços que o Estado não fornece com eficiência. Agora, cerca de 97% das unidades prisionais suspenderam totalmente as visitas aos reclusos, uma medida considerada severa.
Diante da superlotação, falta de estrutura, denúncias de violação de direitos humanos, dados obscuros e familiares sem notícias de seus entes, indica-se a liberdade, através da prisão domiciliar de presos do regime aberto ou semiaberto, para contenção da pandemia, o que já tem sido objeto de decisões judiciais, a contragosto do ministro. O alerta de especialistas em direitos humanos aponta para a calamidade que pode se instalar nas prisões brasileiras com o avanço do coronavírus e para o dever do Estado em tomar medidas que garantam o direito à saúde dessa população já vulnerabilizada.
Tanto a inércia do poder público quanto a falta de medidas efetivas colocam em risco a vida de milhares de reclusos e pessoas envolvidas direta ou indiretamente com o sistema penal. As medidas governamentais legitimam a conversão das prisões em “bombas-relógio” prestes a explodir.
Juliana Alves, jornalista graduada pela Universidade Federal de Mato Grosso, diretora e roteirista do documentário (Sobre) Vivências
Tamires Coêlho, professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFMT, doutora em Comunicação pela UFMG e jornalista