Assim como outras medidas de distribuição de renda e oportunidades sociais, a Renda Básica Emergencial expôs um paradoxo da nossa sociedade: o estigma contra os beneficiários e as fraudes de cidadãos que não se encaixam nos critérios. A política mostrou, também, possibilidades de futuros mais solidários.
Em meio à negligência do presidente no combate à pandemia (“e daí?”), a aprovação da Renda Básica Emergencial na Câmara dos Deputados e no Senado Federal foi uma medida importante diante da crise sanitária e econômica. Após sanção presidencial, o projeto instituiu o pagamento de R$ 600 mensais a trabalhadores informais, autônomos e sem renda fixa. Ao amparar cidadãos desempregados e em condições trabalhistas precárias, a política favorece a recuperação econômica e ajuda na redução de desigualdades.
Assim como outras medidas de distribuição de renda e oportunidades sociais, o Auxílio Emergencial expôs um paradoxo: o estigma contra os beneficiários e as fraudes de cidadãos que não se encaixam nos critérios. Usado por diversos veículos da imprensa, pela Empresa Brasil de Comunicação e mesmo por deputados e senadores, o apelido “coronavoucher” é uma violência simbólica – tratando-o como um “favor”, de forma racista e classista, demarcando os beneficiários pela doença e tentando enfraquecer iniciativas estatais de solidariedade social. O mesmo aconteceu com os programas Bolsa Família e Bolsa Escola, apelidados de “Bolsa Miséria” e “Bolsa Esmola”.
Outros aspectos remetem aos ataques contra as cotas para estudantes negros e da rede pública para o ensino superior. Além do estigma de inferiorização por “precisarem” do benefício e das acusações de que iriam se “acomodar”, também aconteceram fraudes: o Tribunal de Contas da União (TCU) estima oito milhões de pagamentos indevidos. Esse número inclui vítimas que tiveram seus dados cadastrados por terceiros – até famosos, como o empresário Luciano Hang e um jovem filho dos apresentadores Fátima Bernardes e William Bonner. A maioria, no entanto, são fraudes dos solicitantes, como os 73 mil militares, que não se enquadram nos critérios e terão que ressarcir os valores.
O TCU também apontou o pagamento a milhões de jovens da classe média alta, devido a uma falha no cruzamento dos dados de imposto de renda de dependentes. Uma pesquisa do Instituto Locomotiva revelou que um terço das famílias das classes A e B solicitou o benefício, com 69% atendidos, totalizando 3,89 milhões de pagamentos indevidos. A pesquisa mostrou que, mesmo com renda superior ao teto para concessão do auxílio, essas pessoas não se consideram fraudadoras – com argumentos como “sempre paguei impostos e nunca tive nada em troca do governo”, ou “a crise está difícil para todo mundo”. Apresentar informações falsas para receber o auxílio configura falsidade ideológica e estelionato, e o TCU estima o valor dos pagamentos indevidos em R$ 3,6 bilhões. Somente a concepção de um Estado que serve exclusivamente às elites poderia explicar a simultaneidade da estigmatização e das fraudes em massa de um benefício destinado às camadas populares.
Apesar do caráter temporário e restrito, o Auxílio Emergencial reabriu debates sobre projetos de renda universal – como a Renda Básica de Cidadania, elaborada pelo vereador Eduardo Suplicy, que propõe pagar o suficiente para a subsistência a todos os brasileiros, independente da renda individual. Na versão “permanente, universal e incondicional” da renda básica, a extensão a todos tornaria essas fraudes obsoletas e possibilitaria abolir o estigma contra os beneficiários. Diante das crises escancaradas pela pandemia, cabe à sociedade pautar os futuros pela solidariedade e pelo bem comum.
Lucianna Furtado, doutoranda em Comunicação Social (PPGCOM-UFMG)