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O caso Queiroz e a seletividade da Justiça brasileira

Não é à toa que a deusa grega Têmis é um dos símbolos da Justiça. De olhos vendados e com uma balança na mão, ela representa verdade, equidade e imparcialidade. No Brasil, porém, os desdobramentos da recente prisão do policial militar aposentado Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro e amigo do presidente Jair Bolsonaro, mostram que os que encarnam Têmis, muitas vezes, se livram da venda e entortam os pratos da balança diante de nós, sem o menor constrangimento.

Charge: Luiz Fernando Cazo

O desaparecido mais famoso do Brasil nos últimos anos – o Fabrício Queiroz -,  amigo e prestador de serviços da família Bolsonaro, foi preso em 18 de junho, em Atibaia, no interior de São Paulo, em uma ação coordenada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro. Andava sumido da cena pública há mais de um ano, quando já era investigado por suspeita de participação em esquema de “rachadinha” no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Pelas suspeitas do Ministério Público, funcionários do gabinete eram coagidos a desviar parte de seus salários e o dinheiro recolhido era lavado em uma franquia de lojas de chocolate da qual Flávio é sócio. Os laços com a família Bolsonaro e o sumiço em meio a uma investigação foram tão notáveis que o presidente da República comumente ouvia o famoso questionamento sobre seu paradeiro: “Cadê o Queiroz”?

Queiroz estava há mais de um ano escondido em um imóvel do advogado Frederick Wassef, em Atibaia, onde funcionava um escritório de advocacia de fachada. De Wassef logo se soube que não era apenas o responsável pelas defesas de Flávio, na investigação que apura movimentações suspeitas em suas contas, e de Jair Bolsonaro desde o caso da facada desferida por Adélio Bispo de Oliveira, durante a campanha à presidência da República, em 2018. Wassef tem relações com a família desde 2014, pelo menos, e trânsito livre pelo Palácio do Planalto, da Alvorada, e pelas cerimônias do poder.

Sabe-se também que gosta muito de falar. Vive mudando de versões e caindo em contradições nas histórias contadas sobre a relação com Queiroz e com os Bolsonaro. Visto como homem de confiança dos Bolsonaro, disse recentemente: “conheço tudo que tramita na família”. Mas Wassef recusa o papel que alguns lhe atribuem de “homem-bomba” dos Bolsonaro. Em entrevista declarou: “amo o presidente”. Disse também que abrigava Queiroz na casa de Atibaia por humanidade, já que ele tem câncer e estava abandonado, e para evitar que fosse assassinado e culpassem o presidente da República. Não disse quem o ameaçava.

Preso e levado para o presídio em Bangu, no Rio de Janeiro, Queiroz logo saiu da prisão. Nos círculos do poder não lhe faltaram ações de humanidade, como a que o advogado Wassef diz ter feito. O presidente da República já havia criticado a prisão do amigo, classificando-a de “espetaculosa”. O filho Flávio disse se tratar apenas de mais uma peça no tabuleiro para atacar o pai. A ação mais enfática, porém, veio do presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro João Otávio Noronha, que em 10 de julho decidiu transferi-lo da cela em Bangu para prisão domiciliar. O benefício também foi concedido à mulher de Queiroz, Márcia Aguiar – foragida desde a prisão do marido, considerada pela promotoria em papel central nas manobras de Queiroz e uma ameaça às investigações. Noronha justificou a decisão em razão das condições de saúde de Queiroz: tem um câncer, em um contexto de pandemia da Covid-19, sendo recomendável a presença de Márcia para “lhe dispensar as atenções necessárias”.

Além do machismo evidente na decisão, o magistrado foi imediatamente questionado porque já havia negado dois pedidos semelhantes de soltura de presos em virtude da pandemia. Como o STJ é responsável por uniformizar a interpretação da lei federal em todo o país, as reações não tardaram. A apreciação de um novo habeas corpus, desta vez impetrado por advogados do Coletivo de Advocacia em Direito Humanos, solicitando ampliação da decisão de Noronha a todas as pessoas presas preventivamente e que integram o grupo de risco do coronavírus, pode nos confirmar se o caso Queiroz configura a “inaceitável seletividade” do STJ, como argumentam os advogados do coletivo. Motivos não faltam para crer na seletividade e nos interesses que movem muitos dos encarregados de aplicar Justiça no Brasil. O ministro do STJ tem emitido sucessivas decisões favoráveis a interesses do presidente da República e já é apontado como possível indicado à vaga no Supremo Tribunal Federal. A prisão domiciliar de Queiroz e sua mulher foi só mais uma decisão favorável, mas provavelmente uma das mais valiosas para resolver, ao menos no momento, os problemas dos Bolsonaro com Queiroz.

Terezinha Silva, professora do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da UFSC
Thais Araujo, jornalista, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da UFSC e bolsista da Capes



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