No Rio de Janeiro, cidade onde mais de 11 mil morreram por conta da Covid-19, e que apresenta a maior taxa de letalidade da doença no país, houve, no início do mês, a reabertura de parte do comércio, incluindo bares e restaurantes. O que os primeiros sinais dessa flexibilização nos mostraram foi preocupante: aglomerações nos bares de elite do Leblon, onde dezenas compartilham o mesmo espaço, em pé, sem máscara. Seria mesmo o caso de uma “descuidada” negligência sobre a contaminação?
Se uma cidade está “mantendo” indicadores de ocupações dos leitos em termos “estáveis”, podendo inclusive desativar leitos hospitalares antes dedicados à Covid-19, ela estaria preparada para um “retorno” à normalidade? Segundo o prefeito Marcelo Crivella, a cidade do Rio de Janeiro estava, no início de julho, pronta para a “fase três” da reabertura econômica na cidade: academias, comércio e shoppings, atividades em igrejas e o serviço nos bares e restaurantes agora podem funcionar, desde que atendam a determinadas restrições.
Os vídeos que circularam na Internet revelam, no entanto, uma preocupação imediata com o plano “seguro” da flexibilização econômica, denunciando a grande aglomeração de pessoas sem máscara, como nos bares da Rua Dias Ferreira. Enquanto os donos dos bares responsabilizaram ambulantes e os próprios clientes pela quantidade massiva de pessoas, alegando estarem servindo apenas às mesas, num espaço cercado por grades, não há como não perceber um determinado discurso de “liberdade” delimitando entornos simbólicos desse acontecimento. Um discurso, talvez, bem traduzido pela fala de um frequentador do bar nobre que, alegremente, gravou um vídeo na aglomeração: “Tudo voltando ao normal, graças a Deus. Vai tomar no cu, máscara, vai tomar no cu, corona. […] Vamos viver e ser feliz. Que alegria meu irmão!”. A massiva e pública aglomeração nos impõe uma pergunta: qual é a racionalidade daqueles que, cientes do potencial de mortalidade e contaminação do vírus, ainda optam pelo prazer “perdido” da vida social noturna?
Como sugere o poema de Carlos Drummond de Andrade, os “inocentes do Leblon” não são tão passivamente “inocentes”, mas ativamente “inocentes”, isto é, se forjam na sua inocência: eles “tudo ignoram”; “mas, a areia é quente e há um óleo suave / que eles passam nas costas e esquecem”. Enquanto os versos nos abrem para diferentes interpretações históricas possíveis, podemos nos limitar, aqui, a uma: a ideia de uma “liberdade” individual que está acima de qualquer vínculo ético ou político de responsabilidade coletiva; uma liberdade que, ao que parece, está centrada nas estruturas de desigualdade brasileiras e que permitem, facilmente, a esses sujeitos, “ignorar” a situação antagônica criada pela pandemia, onde os óbitos, longe de serem aleatórios, possuem gênero, raça e classe. Não se trata, portanto, de uma “pulsão de morte”, nem do “desconhecimento”, mas da explícita afirmação de indiferença e não-vínculo diante da morte biopolítica do outro.
Os “inocentes do Lebon” de 2020 nos revelam não só a disparidade biopolítica fundamental da sociabilidade brasileira, mas também uma dimensão crucial da mentalidade de um grupo privilegiado no Brasil. Garçons de máscara, clientes sem: na pandemia, quem paga o preço pelo exercício da “minha liberdade”? Retomamos aqui um apontamento de Marielle Franco, em sua dissertação¹: “[…] se os favelados não descessem ou viessem para o asfalto para a execução de vários trabalhos, […] a cidade praticamente pararia, pois a classe trabalhadora pertencente a esses espaços não ocuparia seus postos de trabalho”. Existe mesmo a possibilidade de perseverança de uma sociedade, onde apenas alguns podem perseverar? Isto é, qual o custo da ideia de que eu possa viver a minha vida às custas das outras vidas que me cercam?
O não-vínculo ao outro marcado pela diferença, como nos lembra Judith Butler², é a própria característica intrínseca da fantasia de um super “eu”, invulnerável e que acredita, fielmente, ser apenas responsável por aqueles e aquilo que se voluntaria a ser. O “outro” aqui aparece como a “ameaça” ao meu ideal de “liberdade” e invulnerabilidade: na medida que sou, inevitavelmente, afetado por esse outro que me interpela, me identificando a ele, mesmo que essa não seja minha “vontade”, a linha entre a minha vida e a vida dele, traçada tão firmemente pelas fantasias liberais, se torna mais difusa, não-identificável. A “liberdade” de viver uma vida só “minha”, indiferente à vida dos outros, é a própria afirmação da violência mascarada em uma fantasia neoliberal contemporânea. Nessa fantasia, nos lembra Wendy Brown³, há um “super” sujeito que nega, a todo custo, a ideia de uma sociedade política, da qual ele estaria dolorosamente vinculado, dependente, e seria inevitavelmente responsável: portanto, para proteger sua “liberdade”, ele deve ignorá-la e negá-la, ou, pior, ativamente destruí-la.
A denúncia moral pública parece ser um dos caminhos adotados aqui para a destituição da “inocência” dos jovens frequentadores dos bares do Leblon, em sua explícita decisão de irresponsabilidade. Mas, talvez, essa seja também a oportunidade de desmascararmos uma fantasia vívida no cotidiano brasileiro: há um custo enorme de destruição quando não consideramos que o que chamamos de “nossa vida” é, na verdade, uma rede complexa de vulnerabilidade desigualmente distribuída, responsabilidade, cuidado, trabalho e interdependência entre muitos e muitas, que frequentemente desconhecemos, mas que não poderíamos viver sem. Em outra palavras, em tempos pandêmicos tratados em termos biopolíticos, é urgente compreender que a vida que chamo de “minha” está irrevogavelmente implicada na vida que é também é “sua”, “dele” e “dela”.
¹ FRANCO, Marielle. “UPP – A redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em Administração) – Faculdade de Administração e Ciências Contábeis e Turismo, Universidade Federal Fluminense. Niterói, p. 136, 2014.
² BUTLER, Judith. The force of non-violence: an ethical-political bind. Londres: Verso, 2020.
³ BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. São Paulo: Politeia, 2019.
Lucas Afonso Sepulveda, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG.