Protestos, panelaços e a construção da democracia no Brasil
O texto discute o cenário de protestos e panelaços que se percebe na cena pública, a partir de um protesto contra o governador do Paraná, Beto Richa.
Noite de 19 de maio de 2015. O PSDB exibia nas telas da TV aberta em todo o país o seu programa eleitoral. Em um shopping de Curitiba, a propaganda partidária foi atravessada pelos gritos de “Fora Beto Richa”, o governador do Estado. Um cliente do shopping registrou o momento e fez circular o vídeo nas redes sociais. É possível ler esse acontecimento a partir de dois eixos na tentativa de compreender o seu poder hermenêutico, ou seja, o que ele pode revelar acerca do contexto social em que vivemos – e da democracia que vem sendo construída aqui.
Em primeiro lugar, o protesto contra o governador do Paraná deve ser visto como um desdobramento de um acontecimento mais amplo que mobilizou as atenções do país: o massacre de professores e servidores em greve na capital paranaense pela polícia militar, ocorrido no dia 29 de abril. Esse acontecimento foi amplamente debatido na sociedade e impulsionou reflexões instigantes não apenas sobre o próprio massacre, mas sobre a situação da educação brasileira, como a desenvolvida pela jornalista Eliane Brum (1).
Em segundo lugar, essa ocorrência no shopping curitibano pode ser lida no contexto de outros protestos no cenário brasileiro contemporâneo: durante o pronunciamento da presidenta Dilma Rousseff em oito de março e a exibição do programa partidário do PT em cinco de maio, por exemplo, “panelaços” foram realizados em diferentes cidades brasileiras. Não importava o que a presidenta da República fosse dizer, tampouco o discurso de seu partido; frente a essas falas, muitas pessoas optaram por não ouvir. Não importa o que digam; tais sujeitos não estão dispostos a ouvir – assim como aqueles indivíduos do shopping que se recusaram a ouvir o que o PSDB de Beto Richa gostaria de dizer.
Como refletir sobre esse tipo de manifestação na contemporaneidade? Para além da legitimidade de tais protestos e dos contextos específicos que eles acionam, é preciso pontuar um traço constituidor daqueles que ajudam a compreender a construção da democracia em nosso país. Tais protestos se inscrevem em um contexto em que se busca e se defende (e muito) a liberdade de expressão: a liberdade que os sujeitos têm de falar e se posicionar em diferentes espaços (e que é amplificada pelas redes sociais). Ao mesmo tempo, porém, esses mesmos protestos evidenciam uma incapacidade dos sujeitos para ouvir o que os outros têm a dizer (sobretudo, se não se concordar com estes).
Como bem evidencia Mendonça (2014) (2), ao retomar contribuições de pensadores pragmatistas como J. Dewey e G. H. Mead, a democracia se constrói na garantia do exercício desse duplo direito: de falar e de ser ouvido. É o diálogo, ou a discussão pública em torno de questões que dizem respeito ao bem comum, o grande alicerce na construção de uma sociedade democrática.
Nesse sentido, o que essa ocorrência revela do contexto contemporâneo, ou seja, como ler o poder hermenêutico desse acontecimento? Uma das faces desse poder parece ser justamente essa: a fragilidade de uma democracia que se constrói apenas na valorização da liberdade de falar e de expressar, ao mesmo tempo em que se vale de uma indisposição na escuta aos posicionamentos dos outros.
(1) Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/05/11/opinion/1431351138_436101.html.
(2) MENDONÇA, R. F. A liberdade de expressão em uma chave não dualista: as contribuições de John Dewey. In: Venício Lima; Juarez Guimarães. (Org.). Liberdade de expressão: as várias faces de um desafio. 1ed.São Paulo: Paulus, 2013, v. 1, p. 41-63.
Paula Guimarães Simões
Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG
Pesquisadora do Gris/UFMG