Análise | Diário da Quarentena Poder e Política

Aroeira e os valores da democracia

Uma charge de Aroeira que associa Bolsonaro ao nazismo desencadeou atitudes autoritárias do governo e, ao mesmo tempo, uma onda de solidariedade e defesa da liberdade nas redes sociais.

A charge de Aroeira

Uma cruz vermelha é transformada em suástica nazista pelas mãos de Jair Bolsonaro: “Bora invadir outro?”. A charge construída pelo cartunista Aroeira para o portal Brasil 247 e divulgada pelo jornalista Ricardo Noblat no Twitter critica a convocação feita pelo presidente a seus seguidores para invadir hospitais e filmar oferta de leitos – convocação analisada por este laboratório. Com base na Lei de Segurança Nacional, da época do regime militar, o Ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, anunciou que a Polícia Federal e a Procuradoria-Geral da República iriam instaurar inquérito para investigar o “crime”. A Secretaria de Comunicação da Presidência da República também saiu em defesa de Bolsonaro, acusado do “gravíssimo crime de nazismo”.

Tais atos do governo acabaram por dar ainda mais visibilidade ao trabalho de Aroeira, que retomou uma manifestação de Picasso sobre Guernica para responder à alegação de calúnia: “Se ele (Bolsonaro) me pergunta se eu o estou chamando de nazista, respondo ‘Não, você próprio se chamou. Eu só desenhei’”.

Em solidariedade ao artista, dezenas de cartunistas brasileiros e de outros países fizeram um movimento nas redes sociais contra a censura e em defesa da liberdade: cada um redesenhou e recriou a charge original com seus traços particulares e assinou junto a Aroeira. As várias charges foram amplamente divulgadas, com repercussão nacional e internacional. O New York Times descreveu alguns dos desenhos e destacou que o Brasil é o segundo país com maior número de mortes por Covid-19. A Associação Internacional de cartunistas Cartooning for Peace denunciou as intimidações a Aroeira e outros profissionais brasileiros, reiterando a liberdade de expressão que pauta o trabalho de cartunistas no mundo inteiro.

No Brasil, uma petição em defesa da liberdade de expressão foi criada e já conta com mais de 80 mil assinaturas. Um manifesto assinado por artistas, intelectuais, professores e cientistas reivindica liberdade e democracia, manifestando solidariedade ao “grande artista gráfico Renato Aroeira” e ao jornalista Noblat. Segundo o manifesto, “Ao dizer que um desenho de humor leva perigo à integridade do Estado, o ministro expressa um delírio fanático e alimenta as fantasias totalitárias dos criminosos que promovem ataques crescentes contra a democracia no Brasil. Não aceitamos mais delírios obscurantistas. Não aceitamos intimidações. Abaixo o autoritarismo.”

A ABI (Associação Brasileira de Imprensa), a Abraji (Associação Brasileira de Jornalistas Investigativos), assim como o Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil divulgaram notas condenando a tentativa de criminalização da arte de Aroeira. Esse acontecimento – e o campo de possíveis aberto por ele – revela, certamente, o autoritarismo que permeia o contexto brasileiro contemporâneo. Ao mesmo tempo, as reverberações indicam que a liberdade e a solidariedade são valores ainda vigentes e podem ser acionados coletivamente para contestar práticas totalitárias que tanto ameaçam a democracia brasileira.

Paula Simões, professora do PPGCOM/UFMG. Pesquisadora do GRIS



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