No Carnaval brasileiro, festa popular em que a sátira e o protesto têm lugar desde sempre, a crítica política tem sido ainda mais constante e direta, não só entre os que brincam, mas também entre os que conduzem as escolas e os blocos.
Desde escolas de samba com enredo e estética expressamente contestatórios a bloquinhos de rua com temáticas progressistas, o Carnaval 2020 trouxe para as ruas, redes, telas e avenidas do Brasil verdadeiros manifestos políticos. As questões de gênero – o “não é não” tomou as ruas como palavra de ordem, pintura corporal e nome de bloco – étnico-racial (negra e indígena), LGBT e a defesa de causas diversas, como o meio ambiente, a arte, a educação e a democracia, desfilaram nas ruas do país inteiro durante todo o período de folia.
Dentre as agremiações com grande visibilidade, as cariocas Mangueira e São Clemente foram as mais diretas e incisivas nas críticas: a primeira, com o enredo “A Verdade Vos Fará Livre”, traz o desabafo de um Cristo com rosto de povo diante do contexto de intolerância. A segunda fala de um país que sambou porque “caiu na fake news!” e trouxe o humorista Marcelo Adnet satirizando o presidente da República. Já a vencedora, Viradouro, traz a história de mulheres negras que utilizavam o ganho com quitutes e lavanderia para comprar a própria alforria e de companheiras.
Em São Paulo, a escola Tom Maior se destacou com um enredo que exalta o histórico de resistência da negritude brasileira e teve uma ala inteira em homenagem a Marielle Franco. Águia de Ouro vence homenageando o educador Paulo Freire, cuja memória e legado têm sido intensamente atacados pela extrema-direita brasileira. E em Recife/Olinda, já é tradição: carnaval e política se misturam nas casas, nas ruas e nos pequenos e grandes blocos que percorrem as ladeiras da cidade com discursos engajados e homenagens a personagens da política brasileira. Já em Salvador, o Olodum, comandado pela primeira vez por uma mulher e com o tema “Mãe, Mulher, Maria, Olodum!”, reverenciou a força das mulheres que se levantam em protagonismo.
Estes foram apenas alguns exemplos de manifestações políticas no Carnaval 2020 – talvez as de maior expressão, ou apenas uma parcela delas. Não é novidade que o carnaval é uma festa popular em que a irreverência, a sátira e o protesto têm lugar desde sempre: a subversão e a resistência política são constitutivas dessa tradição cultural. Mas, uma observação rápida sobre a festa nos últimos anos, com olhar especial para 2020, permite-nos perceber que a crítica política tem sido cada vez mais constante e direta, não só nas vozes e vestes dos que estão na “pipoca” e nas arquibancadas, mas também nas vozes oficiais dos que conduzem as escolas e os blocos.
Sendo as manifestações em tão grande número, de modo que só algumas foram citadas e que seria impossível enumerar a maior parte e descrever neste espaço, um sentido se pode apreender: mesmo em tempos de intolerância e autoritarismo – ou talvez por causa deles – a expressão da crítica política por meio da arte, da irreverência e das linguagens discursivas e visuais do Carnaval se mostra mais insistente e cortante. Um bom sinal, porque é exatamente nestes tempos que ela se torna ainda mais necessária.
Cecília Bizerra Sousa, Doutoranda em Comunicação/UFMG e pesquisadora do Gris