O texto discute alguns dos impactos da pandemia de Covid-19 na vida das mulheres. Pesquisas, textos midiáticos e relatos acessados nas redes sociais digitais apontam para a necessidade de se pensar as implicações da crise sanitária inaugurada pelo novo coronavírus tendo em vista o gênero.
Um acontecimento pode ser analisado por seu poder de afetação ou sua passibilidade, isto é, a sua capacidade de tocar, sensibilizar e transformar a vida das pessoas. A pandemia da covid-19 instaurou uma descontinuidade em nosso contexto e vem afetando, de diferentes maneiras, a vida de todas e todos nós. Pesquisas apontam que o “novo normal” inaugurado pela crise sanitária atual “é ainda pior para mulheres”: colocam em pauta a questão da (des)igualdade de gênero e a necessidade de se pensar a situação das mulheres na pandemia de forma interseccional.
Relatório produzido pela ONU Mulheres destaca a necessidade de se pensar nos impactos da pandemia tendo em vista o gênero. O relatório aponta que a violência contra mulheres e meninas tende a aumentar no contexto de emergência em que vivemos – tema já analisado em nosso Diário da Quarentena. O documento ressalta que “a capacidade das mulheres de garantir seus meios de subsistência é altamente afetada pela pandemia”: a crise afeta setores geradores de empregos para as mulheres e também as trabalhadoras informais, que perderam seus meios de sustento, sem contar com uma rede de apoio para garantir sua renda. Além disso, “as mulheres continuam sendo as mais afetadas pelo trabalho não-remunerado, principalmente em tempos de crise”: elas assumem a maior parte das atividades de cuidado (com a casa, com os filhos, com os idosos), ao mesmo tempo em que muitas realizam seu trabalho produtivo de forma remota.
Essa sobrecarga em relação ao cuidado e ao trabalho doméstico está no foco da pesquisa desenvolvida pela Gênero e Mídia e pela SOF Sempreviva Organização Feminista. Entre outros dados, a pesquisa aponta que 50% das mulheres brasileiras passaram a cuidar de alguém na pandemia, 72% disseram que aumentou a necessidade de monitoramento e companhia e 58% das mulheres desempregadas são negras.
Os dados da pesquisa se somam aos diversos relatos que podem ser acessados diariamente na grande mídia e nas redes sociais digitais, nas conversas entre amigas e em grupos de apoio entre mães: relatos de mulheres sobrecarregadas frente à organização da rotina da casa, aos cuidados com os filhos, ao acompanhamento das atividades escolares, à necessidade de remuneração para contribuir ou garantir o sustento da casa ou mesmo que seja para sua realização pessoal, com atividades profissionais realizadas de forma remota ou presencial.
Mesmo quando destacam a existência de ajuda ou divisão de tarefas em casa, inúmeras mulheres descrevem a carga mental que pesa sobre elas. Em grande medida, as mulheres são responsáveis pelo “trabalho constante de atenção, gerenciamento e planejamento das tarefas domésticas e/ou profissionais […]. É um trabalho invisível, sem reconhecimento ou valia, e extremamente desgastante do ponto de vista emocional”. Nesse sentido, a possibilidade e a necessidade de trabalhar fora se apresentam para as mulheres como um difícil quebra-cabeças, sobretudo nesse contexto de pandemia: como articular a atividade profissional, a maternidade, as inúmeras tarefas de cuidado, além da culpa constante por sempre parecer faltar uma peça.
É importante apontar que essa sobrecarga das mulheres se manifesta de múltiplas formas e devemos ressaltar a maneira singular como cada mulher a vivencia. Destacar os recortes de classe e cor se faz fundamental frente ao cuidado necessário para respeitar de maneira específica as dores e dificuldades experienciadas em realidades sociais tão diversas que constroem nosso país. Se as mulheres brancas lutaram para garantir o direito de trabalhar fora de casa, as mulheres negras, como nos ensina Angela Davis (2016)*, travaram suas lutas frente à escravidão, o pós-abolição e a desumanização de seus corpos.
Os dados e os relatos da situação das mulheres na pandemia da covid-19 mostram como a igualdade de gêneros ainda está muito longe de ser alcançada no Brasil. Em contrapartida, os espaços de divisão de angústias e comemoração de conquistas têm se constituído, para as mulheres, como fonte de cuidado e emancipação frente a tantos desafios. Através de redes de apoio tecidas solidariamente e “uma relação baseada em nosso valor como um coletivo com a intenção de gerar uma mudança real em nossa sociedade”, a prática da sororidade se fortalece sinalizando que, apesar de distante, a igualdade se mantém como horizonte.
* DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
Kátia Silva Simões, mestranda em Ciências Humanas na UNISA. Pesquisadora do CISGES – Gênero, Mobilidade e Fronteiras: interdisciplinaridade e construções identitárias
Paula Simões, professora do PPGCOM/UFMG. Pesquisadora do GRIS