A insistência de Jair Bolsonaro no debate entre “salvar vidas” e “salvar empregos” na crise sanitária instaurada pela pandemia do novo coronavírus.
A crise da pandemia do novo coronavírus instaurada no mundo tomou conta de nossas vidas de maneira absoluta: o recolhimento e o afastamento do convívio social, até o momento, são tidos como as medidas mais efetivas para a redução da propagação do vírus e do colapso do Sistema Único de Saúde. As medidas tomadas por governadores e prefeitos no sentido de coibir a circulação das pessoas nos centros urbanos provocou fortes críticas do Presidente da República, Jair Bolsonaro e de seus apoiadores, de modo a se instalar um mórbido debate sobre o que seria mais relevante: salvar vidas ou salvar a economia.
Na noite de 24 de março, Bolsonaro foi a Rede Nacional de Rádio e TV para fazer pronunciamento no qual se referiu a Covid-19 como “gripezinha” e “resfriadinho” e criticou as medidas restritivas tomadas por prefeitos e governadores. No dia seguinte, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República publicou imagens com o slogan O Brasil não pode parar e vazou o vídeo publicitário encomendado pelo órgão para ser veiculado nacionalmente. Além disso, vários de seus seguidores compartilharam conteúdos críticos às medidas de isolamento social defendidas por Estados e Municípios em atenção às recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS). O desemprego e a fome matam muito mais que o vírus, mas não causam a mesma comoção, argumenta-se: “alguns vão morrer, lamento, essa é a vida!”, vaticinou o presidente. As fortes reações da sociedade não tardaram: políticos de diferentes colorações partidárias, membros dos poderes Legislativo e Judiciário, entidades representativas da área da saúde, dentre outros, contestaram o discurso do presidente, além de terem sido ajuizadas várias ações para impedir a veiculação da referida campanha.
Uma semana depois, em novo pronunciamento, o presidente mudou o tom: reconheceu a gravidade da pandemia e falou em diálogo e união dos poderes da República e dos entes federados do Estado brasileiro, mas afirmou sua disposição de “salvar vidas, sem deixar para trás os empregos”. No entanto, não deixou de mentir: valendo-se de trechos do discurso do diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, argumentou que ele também se preocupava com a situação econômica das pessoas mais vulneráveis, mas omitiu a parte em que este mesmo diretor conclama os governos a responderem a essa situação, dada a necessidade de isolamento das pessoas.
Com previsões catastróficas para as próximas semanas e números que chegam a mais de 40 mil mortos no país, a surrealidade que tomou conta da política nacional desde a eleição de Bolsonaro parece forçar sua presença: no lugar de discutir que medidas precisam ser tomadas para diminuir a propagação do vírus, atender aos infectados e possibilitar que os cidadãos brasileiros tenham assistência governamental para se manterem em casa, perde-se um tempo considerável com um debate inadmissível de se escolher entre a economia ou a vida de milhares de pessoas, dilema inexistente na avaliação de especialistas em Economia.
O diretor Steven Spielberg, em A lista de Schindler, popularizou o imortal ensinamento judaico que diz “quem salva uma vida, salva o mundo inteiro”. No filme, os mais de mil judeus salvos do extermínio pelo empresário Oskar Schindler (Liam Neeson) lhe entregam um anel de ouro, feito com próteses dentárias de ouro de um dos “judeus do Sr. Schindler”, no qual fora cunhada a frase do Talmude, o conjunto dos livros sagrados do judaísmo. Em momentos de crise humanitária como a que vivemos, não faltam exemplos de solidariedade, generosidade e espírito público. A pandemia do coronavírus se coloca como um desafio global e humanitário de proporções ainda desconhecidas. E, sem surpresa, constatamos que não será do chefe do Executivo nacional que virá qualquer exemplo que nos inspire humanidade, compaixão, solidariedade e espírito público.
Frances Vaz, Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social (UFMG)