Os números das eleições municipais de 2020 trazem muitas possibilidades de leitura – o crescimento da esquerda nas grandes cidades, a derrota de candidatos bolsonaristas. Mas o conjunto dos votos distribuídos pelo país revelam que a força da direita se mantém e avança.
Neste contexto da pandemia, de forte crise econômica, com mais de 14 milhões de desempregados e total incerteza quanto ao futuro, 5.568 munícios brasileiros foram às urnas para eleger prefeitos e vereadores.
Dentre as grandes cidades, várias vão ainda passar pelo segundo turno, e só então teremos um quadro mais definitivo do mapa eleitoral. Mesmo assim, é importante nos perguntarmos sobre o que mostrou esse primeiro turno das eleições. Nas eleições de 2016 valeu o discurso da “nova política”, e supostos outsiders foram eleitos – João Doria (PSDB) em São Paulo, Marcelo Crivella (Republicanos) no Rio de Janeiro, Alexandre Kalil (PSD) em Belo Horizonte. E agora, em 2020, que tendências foram delineadas? Dentre as forças políticas, quem ganhou, quem perdeu?
Não há uma leitura única, e analistas chamaram a atenção para aspectos diversos. Leonardo Avritzer identifica um voto menos ideológico e mais pragmático, em apoio a bons administradores e políticos experientes. É o que explicaria a reeleição em primeiro turno de prefeitos que tiveram uma boa atuação frente à pandemia, como Kalil em Belo Horizonte, Cinthia Ribeiro (PSDB) em Palmas, entre outros. Também a votação expressiva de Eduardo Paes (DEM) no Rio de Janeiro e seu favoritismo para o segundo turno (para um terceiro mandato) exprimem a volta do político tradicional.
O mau desempenho de candidatos apoiados por Bolsonaro em cidades importantes, como Celso Russomanno (Republicanos), em São Paulo, Crivella no Rio, possibilitou a leitura de um certo enfraquecimento da força do presidente como cabo eleitoral.
Por outro lado, a presença de candidatos da esquerda em importantes disputas do segundo turno, como Guilherme Boulos (PSOL) em São Paulo, Manuela d’Ávila PCdoB) em Porto Alegre, João Coser (PT) em Vitória, Marília Arraes (PT) em Recife, entre outros, trazem certo alento às forças progressistas e uma avaliação positiva dos resultados para o campo da esquerda. Algumas leituras também sugerem que os resultados da esquerda apontam para uma relativa perda de hegemonia do Partido dos Trabalhadores em aglutinar e representar esse campo.
No entanto, como ressalta Breno Altman, nada como os números para fundamentar uma análise mais precisa e qualitativa. Em levantamento bastante minucioso, este analista do canal Opera Mundi traçou um quadro não muito alvissareiro – pelo menos deste primeiro turno.
Altman agrupou os partidos em seis grandes blocos, seguindo um espectro ideológico que vai da esquerda até extrema direita: esquerda; centro-esquerda; “pântano” (nomeou assim partidos que nunca se sabe onde estão: se mais para a centro-esquerda, mais para o campo conservador), direita neoliberal; centrão; bolsonarismo*. Conforme essa divisão, fez o levantamento de votos em três tipos contagem: número de votos que cada bloco obteve para prefeito; número de prefeitos eleitos, número de vereadores eleitos.
Na contagem de votos para prefeito, a esquerda mais ou menos se manteve; a centro-esquerda sofreu uma perda considerável; o pântano teve pequeno crescimento; a direita neoliberal sofreu forte queda; o centrão subiu, assim como o bloco bolsonarista (obtendo, os dois últimos, cerca de 43% dos votos. Esquerda e centro-esquerda tiveram 21%).
Com relação ao número de prefeitos eleitos, a esquerda e centro-esquerda caíram; o pântano subiu; a direita neoliberal despencou; o centrão e o bolsonarismo cresceram (obtendo, juntos, cerca de 2.500 prefeituras, ou mais 47% do total. Esquerda e centro-esquerda ficaram com 788 prefeituras, cerca de 15%).
Quanto ao número de vereadores, a esquerda, centro-esquerda e pântano caíram; a direita neoliberal se manteve estável; o centrão e bolsonarismo subiram (atingindo, os dois últimos, 48% dos vereadores eleitos, enquanto esquerda e centro-esquerda apenas 17%).
Na análise de Altman, o campo conservador se mostra claramente majoritário: no que toca à quantidade de votos para prefeito, o bolsonarismo, o centrão e a direita neoliberal alcançam 75% dos votos, enquanto a esquerda e centro-esquerda apenas 20%.
Sua leitura, no entanto, não é derrotista. Ele entende que, nas eleições municipais, historicamente, e por razões específicas, a direita sempre manteve a dianteira. Cruzando os três tipos de contagem de votos (e analisando também a votação de cada partido dentro dos seis campos), ele registra que a perda maior (portanto, a maior derrota) foi da direita neoliberal e da centro-esquerda. A direita, mais próxima do extremo do espectro, cresceu, e a esquerda, que havia sofrido uma hemorragia em 2016, se manteve estável (ou seja, parou de perder). Destacando ainda uma recuperação da esquerda nos grandes centros, e possibilidade de melhoria na sua posição comparativa com a eleição do segundo turno.
Podemos questionar o agrupamento desenhado por Altman, mas os números dos respectivos partidos estão lá, confirmando a polarização esquerda X extrema-direita já expressa nas eleições presidenciais de 2018, com o enfraquecimento dos partidos do meio. De fato, Bolsonaro parece ter perdido força como cabo eleitoral, mas há fortes indícios de que o bolsonarismo tenha se fortalecido independentemente de seu líder.
Também não podemos esquecer que outros dados, indicando a presença e o crescimento de representantes de grupos politicamente minoritários – mulheres, mulheres negras, LGBT, indígenas – possibilitam outras leituras. Mas ao lado dessas conquistas, o alerta está no horizonte: a direita está aí e tem enraizamento.
* Esquerda (PT, PSOL, PCdoB); centro-esquerda (PDT, PSB, REDE); pântano (PV, CIDADANIA, PODEMOS); direita neoliberal (MDB, PSDB, DEM, NOVO); centrão (PSD, PL, PP, PTB, SD, PROS, AVANTE); bolsonarismo (REPUBLICANOS, PSL, PSC, PATRIOTAS, PRTB)
Vera França, professora titular de Comunicação Social da UFMG e coordenadora do GrisLab