O quadro nefasto da pandemia, que veio exacerbar problemas e limites já vividos por nossas sociedades em nível mundial, inspira medo e ressuscita fantasmas, como formas mais intensas de autoritarismo, aumento do sofrimento e morte, sobretudo junto aos grupos sociais mais fragilizados.
Ao mesmo tempo, porém, hipóteses mais alvissareiras também são evocadas. Algumas exploram as possibilidades de autorreflexão e autoconhecimento estimuladas por esse momento de parada e de isolamento. Seria o tempo de contato consigo próprio, e de revisão de rumos e escolhas; de crescimento espiritual, de formatação de novos projetos de subjetivação (de sujeitos mais solidários e menos egoístas).
No entanto, vivemos em coletividade — e nem sempre as alternativas de vida estão ao alcance de decisões individuais. É por este caminho que alguns pensadores, críticos do contemporâneo, vislumbram nessa crise global a possibilidade do surgimento de um outro tipo de sociedade. Citando Slavoj Zizek*,
“quizás otro virus ideológico, y mucho más beneficioso, se propagará, y con suerte nos infectará: el virus de pensar en una sociedad alternativa, una sociedad más allá del estado-nación, una sociedad que se actualiza a sí misma en las formas de solidaridad y cooperación global”.
O que poderia levar ao surgimento desse “vírus”, que elementos poderiam estimular movimentos em direção a um outro projeto de sociedade? Exatamente a falência do atual projeto, exposta de maneira brutal pela experiência da doença letal que se expande — ainda sem controle — por todo o mundo.
A chegada inesperada da pandemia evidencia de forma crua os limites – e a fatura — do modelo neoliberal que se tornou hegemônico nas últimas décadas. Esse modelo tem como espinha dorsal a combinação da ideia de livre mercado (e seu corolário, o Estado mínimo) e o ideal-tipo do empreendedor de sucesso (self made man).
A propagação da Covid-19 e seu saldo de mortes e devastação colocam na ordem do dia um conjunto de questões:
Estas perguntas já vinham sendo feitas, mas em níveis restritos. A chegada do coronavírus mostrou o quanto somos frágeis coletivamente — e o quanto nossa sobrevivência deve ser resultado de um projeto coletivo, e não individual ou setorizado.
Quem sabe esse momento de caos e a tomada de consciência que ele proporciona nos estimule — e nos empurre — na busca de um outro modelo de sociedade? Um modelo alternativo, baseado na solidariedade, no respeito a todas as formas de vida e na justiça social?
* ZIZEK, Eslavoj. El coronavirus es un golpe al capitalismo a lá Kill Bill…. IN: AMADEO, Pablo (org.) Sopa de Wuhan. Editorial ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), marzo 2020.
Vera França, professora titular de Comunicação Social da UFMG e coordenadora do GrisLab