Análise | Diário da Quarentena Poder e Política

Qual futuro depois da pandemia? Quem sabe uma sociedade mais solidária?!

O quadro nefasto da pandemia, que veio exacerbar problemas e limites já vividos por nossas sociedades em nível mundial, inspira medo e ressuscita fantasmas, como formas mais intensas de autoritarismo, aumento do sofrimento e morte, sobretudo junto aos grupos sociais mais fragilizados.

Ao mesmo tempo, porém,  hipóteses mais alvissareiras também são evocadas. Algumas exploram as possibilidades de autorreflexão e autoconhecimento estimuladas por esse momento de parada e de isolamento. Seria o tempo de contato consigo próprio, e de revisão de rumos e escolhas; de crescimento espiritual, de formatação de novos projetos de subjetivação (de sujeitos mais solidários e menos egoístas).

No entanto, vivemos em coletividade — e nem sempre as alternativas de vida estão ao alcance de decisões individuais. É por este caminho que alguns pensadores, críticos do contemporâneo, vislumbram nessa crise global a possibilidade do surgimento de um outro tipo de sociedade. Citando Slavoj Zizek*,

quizás otro virus ideológico, y mucho más beneficioso, se propagará, y con suerte nos infectará: el virus de pensar en una sociedad alternativa, una sociedad más allá del estado-nación, una sociedad que se actualiza a sí misma en las formas de solidaridad y cooperación global”.

O que poderia levar ao surgimento desse “vírus”, que elementos poderiam estimular movimentos em direção a um outro projeto de sociedade? Exatamente a falência do atual projeto, exposta de maneira brutal pela experiência da doença letal que se expande — ainda sem controle — por todo o mundo.

A chegada inesperada da pandemia evidencia de forma crua os limites –  e a fatura — do modelo neoliberal que se tornou hegemônico nas últimas décadas. Esse modelo tem como espinha dorsal a combinação da ideia de livre mercado (e seu corolário, o Estado mínimo) e o ideal-tipo do empreendedor de sucesso (self made man).

A propagação da Covid-19 e seu saldo de mortes e devastação  colocam na ordem do dia um conjunto de questões:

  • é possível enfrentar uma crise sanitária sem a presença e atuação do Estado? O Estado pode estar ausente da prestação de serviços básicos — como é a saúde? Uma rede privada de assistência à saúde é capaz de atender às necessidades de uma sociedade, sobretudo de seus segmentos sociais mais frágeis?
  • a dinâmica de mercado responde às necessidades de investimento em áreas preventivas — o que inclui estoque de material essencial, pesquisa científica para identificação e tratamento de doenças e/ou problemas futuros?
  • o que significa negligenciar a pesquisa científica e tecnológica de longo prazo, em função do utilitarismo pragmático do corte de gastos públicos?
  • esforços individuais são suficientes para enfrentar uma crise (seja ela sanitária ou de outra ordem)? Os “méritos” de cada um são suficientes para preservá-lo (e aos seus) da contaminação e, eventualmente, da morte?
  • as leis do mercado nos organizam e nos preparam para enfrentar catástrofes coletivas?
  • podemos continuar convivendo com o atual nível de concentração da riqueza e da renda? Temos consciência do que significa priorizar os lucros e a produtividade em detrimento das pessoas, dos empregos, da sobrevivência digna de todas as pessoas?
  • quanto tempo mais a sociedade suporta a restrição contínua de gastos públicos na área social — consequência da minimização do papel do Estado e do domínio do capital financeiro?
  • um pequeno período com a diminuição do trânsito e do funcionamento das máquinas já provocou mudanças na qualidade da atmosfera, das águas. Queremos continuar a destruição cada vez mais visível e predatória de nosso ecossistema?

Estas perguntas já vinham sendo feitas, mas em níveis restritos. A chegada do coronavírus mostrou o quanto somos frágeis coletivamente — e o quanto nossa sobrevivência deve ser resultado de um projeto coletivo, e não individual ou setorizado.

Quem sabe esse momento de caos e a tomada de consciência que ele proporciona nos estimule — e nos empurre — na busca de um outro modelo de sociedade? Um modelo alternativo, baseado na solidariedade, no respeito a todas as formas de vida e na justiça social?

* ZIZEK, Eslavoj. El coronavirus es un golpe al capitalismo a lá Kill Bill…. IN:  AMADEO, Pablo (org.) Sopa de Wuhan. Editorial ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), marzo 2020.

Vera França, professora titular de Comunicação Social da UFMG e coordenadora do GrisLab



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