Uma denúncia da Rede Globo sobre irregularidades em assentamentos abre brecha para discutir a importância e a legalidade da reforma agrária no Brasil, como um processo de devolução das terras para quem nelas trabalha.
No domingo passado, 23 de junho, o semanal Fantástico veiculou uma matéria denunciando fraudes e irregularidades em áreas de assentamento destinadas à Reforma Agrária. O tema aparecer na maior emissora de televisão do país é, por si só, um acontecimento – que revela tensões e potencialidades.
No início da reportagem, os apresentadores do programa de televisão explicaram como funciona o procedimento de assentamento de famílias no campo brasileiro a partir do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), órgão criado em meio à Ditadura Militar, cuja função é ser a instituição governamental responsável pela redistribuição de terras no país.
“Há quase 50 anos, o governo brasileiro criou o Incra, com a missão de promover a reforma agrária. Terras improdutivas foram desapropriadas e oferecidas a camponeses, para que eles pudessem produzir alimentos e ter uma vida mais digna”, explicou a Rede Globo, no início da reportagem. A reportagem percorreu todo o país em busca de fraudes, e encontrou alguns pontos de irregularidade dentre os aproximadamente 82 milhões de hectares de terra dedicados à reforma agrária.
Dentre as denúncias, estão algumas áreas do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) no Rio Grande do Sul, com acusações de uso indevido da terra para fins lucrativos, e compra e venda de lotes. Vale lembrar: além de ser o maior produtor de arroz orgânico da América Latina, o MST é também o maior movimento social rural latino-americano, com base social de mais de meio milhão de famílias sem terra, distribuídas em acampamentos e assentamentos em 24 estados do país – e é um dos principais defensores de um projeto de reforma agrária no campo que contemple métodos de vida e produção em harmonia com o meio ambiente.
Em resposta à notícia, através de nota, o MST rebateu as denúncias da emissora, afirmando que uma de suas diretrizes é ser contra a venda de terras. Pensando a distribuição de terra para quem nela trabalha, o Movimento realmente declara em seu programa agrário, publicado em 2013, que é contra a prática. Como forma de estruturação da vida no campo, o MST defende que os trabalhadores e as trabalhadoras rurais tenham o título de posse da terra, e não a propriedade, para que não haja comercialização das terras e especulação, gerando nova acumulação.
A nota também denuncia a ‘vista grossa’ feita pelo governo federal, pelo governo do Rio Grande do Sul e pelo próprio INCRA (instituições que tem a responsabilidade de fiscalizar irregularidades nas áreas de reforma agrária); e afirma que a Rede Globo tem interesses políticos na denúncia, e que o objetivo da desmoralização está relacionado ao agronegócio. De fato, o mesmo grupo de mídia que denuncia irregularidades na reforma (acabando por criminalizar as ocupações de terra do MST), tem como fonte de renda o patrocínio de empresas ligadas ao agronegócio e um posicionamento explícito em relação a qual projeto de produção agrícola apoia.
Contudo, e curiosamente, a denúncia da emissora reafirma a importância da reforma para a construção da vida no campo, e explica sobre a titulação, concedida após 10 anos de produção na terra. Ao denunciar, abre espaço para que o camponês assentado explique a reforma agrária com suas palavras, passando o entendimento de que os casos de fraude são isolados, e que a distribuição de terras é constitucional. E também explica a necessidade da distribuição de terras no Brasil, ainda que de maneira breve (e um tanto desonesta, quando omite as grilagens de terra, por exemplo, além das demais formas de violência no campo).
De certa forma, a Globo contribui para o debate da reforma agrária indiretamente e, a partir dessa brecha, é possível ampliar o entendimento acerca da redistribuição de terras no Brasil, conhecendo um pouco dessa realidade camponesa tão invisibilizada. A tentativa de desqualificar a reforma agrária colocou o Fantástico no papel de ter que explicar e dar visibilidade para a luta pela terra, uma brecha potencial para os movimentos sociais na batalha pelo imaginário social.
Agatha de Souza Azevedo
Mestranda em Comunicação Social pela UFMG
Pesquisadora do EME – Grupo de Pesquisa em Mídia e Esfera Pública