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“Só para não esquecer: Fora, Bolsonaro” e leve contigo o conservadorismo do voleibol

Após a decisão do terceiro lugar de uma das etapas do Circuito Brasileiro de vôlei de praia, a atleta Carol Solberg, em entrevista ao locutor do evento, encerrou sua fala dizendo: “só para não esquecer: fora, Bolsonaro!”. O episódio levou a jogadora a ter que se explicar no Supremo Tribunal de Justiça Desportiva. Para além do tratamento desigual dado à esportista, o acontecimento também revela o conservadorismo que envolve a modalidade, uma característica distinta dos públicos que mais a pratica.

Charge: Quinho, 2020

Provavelmente, o vôlei é o segundo esporte mais popular do Brasil, perdendo apenas para o futebol. Se, a princípio, o ocupante do primeiro lugar carrega consigo o imaginário da masculinidade e virilidade, que o qualifica como “coisa de homem”, o vôlei, por sua vez, poderia ser uma alternativa para fugir desse universo machista. Potencial para isso ele tem. O vôlei, diferentemente do futebol, tem campeonatos e ídolos masculinos e femininos de igual relevância, ligas voltadas exclusivamente para o público LGBTQIA+ e a alcunha de “esporte de viado”. Mas, ao se fazer um retrospecto na história recente desse esporte, evidenciam-se traços de conservadorismo, desigualdade de gênero e casos de LGBTfobia tão recorrentes quanto os que são vistos no desporto com os pés.

Um desses casos é o do jogador Lilico. Assumidamente gay, o atleta muitas vezes figurou entre os maiores pontuadores da Superliga, campeonato nacional mais importante do esporte, mas nunca foi convocado para representar a seleção brasileira. Segundo ele, porque “ter um viado no time mancharia a reputação da equipe a nível internacional”. Outro episódio evidenciando esse lado retrógrado do vôlei aconteceu com a ex-ponteira da seleção, Érika Coimbra. A esportista teve que passar por um procedimento conhecido como “teste de feminilidade” para comprovar ser mulher. Isso porque Érika nasceu com má formação no órgão genital, o que a levou a se submeter a uma cirurgia reparadora e a tratamentos hormonais para obter aprovação para competir. Hoje, esse fatídico teste, que pode incluir a constrangedora inspeção visual, foi abolido pela Federação Internacional de Voleibol (FIVB). Por fim, o caso mais recente é da atleta transexual Tiffany Abreu, a primeira a competir na Superliga Feminina de vôlei. Apesar de ter permissão da FIVB e do Comitê Olímpico Internacional (COI), a participação de Tiffany nas quadras está frequentemente ameaçada. Tanto pelas legislações locais — como a proposta de lei da Assembleia Legislativa de São Paulo que impedia a participação de atletas trans em qualquer competição de âmbito estadual —; quanto pelo preconceito de outras personalidades do esporte — como o do técnico Bernadinho que, em partida contra o time da atleta, foi pego pelas câmeras dizendo: “um homem é foda”.

Esse cenário apresentado nos ajuda a entender os valores em torno da recente polêmica envolvendo a atleta Carol Solberg. A voleibolista, em entrevista ao vivo após um jogo do Circuito Brasileiro de Vôlei de Areia, se manifestou contra o presidente Jair Bolsonaro. A regra do campeonato proíbe que os atletas se posicionem politicamente durante o evento. O caso adquiriu grande repercussão nas redes sociais digitais e foi a julgamento no Supremo Tribunal de Justiça Desportiva (STJD).

Há pelo menos dois aspectos, no acontecimento, que dizem sobre o esporte e, não muito diferente, sobre o contexto político-social do país: mulheres sofrem tratamentos diferentes e manifestações de apoio ao presidente são mais bem aceitas que as contrárias. Exemplo disso é que as retaliações sofridas por Solberg foram desproporcionais a um caso semelhante ocorrido na seleção masculina em 2018, quando os jogadores Wallace e Maurício Souza fizeram o número 17 com as mãos durante uma foto no Campeonato Mundial, uma manifestação de apoio ao então candidato à presidência, Jair Bolsonaro. Na ocasião, em nota oficial, a Confederação Brasileira de Vôlei (CBV) disse apenas que “não compactua com manifestação política. Porém, a entidade acredita na liberdade de expressão”. Um posicionamento muito diferente do sofrido por Carol, cuja nota de repúdio, emitida pela mesma instituição, afirmava que seriam tomadas “[…] todas as medidas cabíveis para que fatos como esses, que denigrem a imagem do esporte, não voltem mais a ser praticados”. Além do tratamento desigual dado a homens e mulheres, a nota se destaca pelo uso da palavra denegrir, um termo racista utilizado para colocar a negritude como sinônimo de negativo.

Enquanto Wallace e Maurício Souza receberam apenas advertência e nem mesmo foram julgados pelo STJD, Solberg foi acusada pela procuradoria do órgão sob a alegação de que descumpriu o regulamento da competição e teve conduta contrária à disciplina desportiva. A punição sugerida era de até 100 mil reais e 6 partidas de suspensão. Após mobilizações de diversos grupos e organizações, a atleta recebeu pena de advertência no julgamento em 1 ª instância; ainda assim, recorreu da decisão e conseguiu ser inocentada em 2 ª instância.

A coragem e a força de Carol Solberg são a síntese das características essenciais que ainda faltam ao universo do vôlei e nas suas instituições brasileiras. Um esporte que atrai tantas mulheres e tantos LGBTQIA+ deveria se orgulhar disso e se preservar para que situações de desigualdade e discriminação não ocorressem — atitude  que só se concretizará  quando a modalidade reconhecer  seu público diverso, politizado e composto por grupos socialmente vulneráveis.  

Contudo, o vôlei ainda não se assumiu como o “esporte de mulherzinha” ou “de quem quebra a munheca”. Pelo contrário, vive na fantasia de ser o que não é. Não enxerga que a oportunidade de deixar de ser a sombra do futebol está exatamente em se colocar como um esporte de vanguarda, progressista, inclusivo, que defenda a liberdade de expressão e a democracia. Traços que já estão em quem o pratica, mas são escondidos pelas suas entidades. Ao tentar parecer ser apolítico, o vôlei esquece que isso é inevitável na própria potência política dos corpos de quem está em quadra. Desde o corpo transexual de Tiffany, que luta para ser reconhecido como o de uma mulher, quanto no de Carol, que mesmo agora verbalmente silenciado pelas regras opressoras, a cada movimento de saque, defesa, levantamento e ataque é um grito de “fora, Bolsonaro”.

Dôuglas Ferreira, professor do Departamento de Comunicação da UFMT e doutorando em Comunicação Social pela UFMG



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