Neste texto, abordamos diferentes temporalidades e questionamentos em torno da crise política que ocorre na Bolívia, país que viveu grande crescimento econômico nos últimos anos e que, atualmente, experimenta conflitos violentos e grande incerteza quanto a seu futuro.
Dia 10 de novembro: o presidente Evo Morales renuncia após a “sugestão” feita por militares. No Brasil, uns comemoram, outros lamentam. Mas o sentimento mais comum é a surpresa: “o que está acontecendo com o continente? A confusão não era no Chile? De repente, o presidente boliviano cai?!”.
Mas para mim, boliviano nascido em La Paz, não foi algo tão repentino. Talvez a atenção brasileira para os conflitos no país vizinho seja recente, mas eu estava apreensivo há alguns anos e dormia mal há algumas semanas. Familiares e amigos residentes em La Paz não podiam levar os filhos às escolas, porque elas estavam fechadas há mais de 10 dias.
As temporalidades por trás das narrativas e das vivências desse acontecimento mostram-se bastante distintas.
Relevante líder cocalero e sindical, Evo tinha sido um dos protagonistas da queda do mandatário corrupto e neoliberal Gonzalo Sanchez de Lozada em 2003, mas foi eleito apenas em 2005 com uma expressiva votação. Ainda em seu primeiro mandato, promulgou uma nova Constituição e incorporou um forte discurso de identidade indígena ao seu governo. De lá para cá, o país adotou políticas de nacionalização de recursos minerais e de redistribuição de renda, destacando-se no continente por obter índices de crescimento econômico em torno de 5% ao ano.
Em outubro de 2019, Evo tentava um quarto mandato, embora a Constituição assinada por ele permitisse apenas uma recondução. Em 2015, a justificativa para o terceiro mandato seria o fato de a nova Carta não poder retroagir sobre os períodos anteriores. E, desta vez, a controvérsia seria maior. Em 2016, fora realizado um referendo para que o texto constitucional (com menos de 10 anos de vigência) fosse modificado, permitindo eleições ilimitadas. O resultado foi a primeira derrota eleitoral de Evo, com 51% da população votando contra a emenda.
Em 2018, o Tribunal Superior Eleitoral (eleito pelo presidente e por um Congresso majoritariamente alinhado ao Executivo) permite a candidatura de Evo com a justificativa de que um limite no número de mandatos infringiria um direito humano, pois toda pessoa deveria ser livre para disputar um cargo político.
A Bolívia é um país marcado pelo racismo, e parte importante das abordagens dadas aos últimos acontecimentos têm tocado nesse aspecto. No entanto, o contexto em torno da saída de Evo é mais complexo do que uma disputa entre brancos e índios. Desde a questionável liberação da candidatura pelo TSE, o apoio a Evo vinha diminuindo, inclusive entre setores populares. O lema era: “¡Bolívia dijo no!” (Bolívia disse não).
É nesse clima que acontecem as eleições gerais, no dia 20 de outubro, com a vitória de Evo em primeiro turno. O resultado é contestado, e uma comissão técnica da Universidad Mayor de San Andrés (a mais relevante instituição pública de ensino superior no país), assim como observadores da Organização dos Estados Americanos, apontam a existência de irregularidades. A oposição cresce, o país se divide de vez e o lema muda: “¿Evo de nuevo? Huevo, carajo!”. Neste caso, prefiro nem traduzir.
Se os cocaleros de Cochabamba se mantiveram fiéis, os de La Paz pediram a renúncia; se grupos indígenas do altiplano defendiam conquistas, os povos originários amazônicos denunciavam as queimadas e a expansão das fronteiras agropecuárias. Grupos mineiros da região de Potosí o apoiavam, ao contrário da Confederação Operária Boliviana. A reduzida elite branca já tinha escolhido seu lado previamente, mas os setores médios (mestiços e urbanos) viveram uma divisão como há muito tempo não se via.
Após uma era de transformações, uma nova mudança vinha sendo gerada na Bolívia. Num país que já teve mais de 60 presidentes e onde poucos deles estiveram mais de dois anos no poder, as tensões criadas nos quase 14 anos de Evo alcançaram um nível crítico.
O desfecho foi trágico e sangrento: dezenas de pessoas mortas, a oportunidade ideal para que interesses estrangeiros se aproveitem do vácuo de poder e a ascensão de uma liderança fundamentalista como Luis Fernando Camacho, que celebrou a queda de Evo com uma Bíblia em mãos e prometeu devolver a fé à política nacional.
E, embora o diagnóstico de que foi um Golpe de Estado (aplicável em termos jurídicos, mas superficial em termos históricos) provoque discussões acaloradas, prefiro não terminar a análise com uma resposta. Em vez disso, proponho perguntas que podem ser produtivas tanto para bolivianos imersos na crise quanto para brasileiros preocupados com as ameaças às democracias que se apresentam mundo afora:
– É democrático desrespeitar o resultado de um referendo popular? A reeleição ilimitada é um direito humano?
– Até que ponto um governo provisório, como o da senadora boliviana Jeanine Añez (ou como foi o de Michel Temer), pode se declarar explicitamente contrário a uma plataforma eleita pelas urnas? Isso é democrático?
– Evo está exilado no México, mas o Movimiento al Socialismo (MAS) conta com uma militância aguerrida e mais de dois terços do Congresso. O maior partido do país seria capaz de defender um projeto político sem o seu principal quadro? A emancipação popular prometida pelo MAS consegue superar a dependência em relação a um líder?
– Quando já estava por terminar este texto, interrompi a escrita para a ouvir uma conversa “vazada” em que Luís Fernando Camacho e Marco Pumari (outro líder do movimento que derrubou Evo) negociavam quantias e cargos, enquanto discutiam as próximas eleições. Quem protestou contra a corrupção “masista” e celebrou a derrubada de Evo vai perceber que a política não é uma disputa de mocinho e bandido?
– Por falar em áudio vazado durante um governo provisório. Lembram do diálogo entre Romero Jucá e Sérgio Machado em 2016?
Nossa leitura de um contexto sempre vai partir de algumas perspectivas. A minha tem sido influenciada por mentes bolivianas ligadas principalmente ao pensamento aimará e feminista. Alguns links:
– Mujeres creando (atenção especial aos vídeos do “Parlamento de las mujeres”)
Carlos Jáuregui, Professor Adjunto do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto, com doutorado em Comunicação Social pela UFMG. É natural de La Paz, Bolívia, com raízes no altiplano e nos vales andinos