Tabu, o tema do aborto voltou ao destaque midiático recentemente quando a PEC 181 teve uma alteração aprovada por uma comissão masculina, sem debate social e desconsiderando milhares de mulheres anualmente mortas ou com sequelas, vítimas de procedimentos inseguros e ilegais. De forma ainda mais cruel, a PEC, agora alterada, retira o direito até nos casos de aborto previstos hoje na legislação.
A Proposta de Emenda à Constituição 181, com alteração proposta por Jorge Tadeu Mudalen (DEM-SP), foi apelidada de “Cavalo de Troia”. Aprovada por 18 homens religiosos e conservadores como reação à decisão do Supremo Tribunal Federal de não considerar crime abortar até o terceiro mês de gravidez, a PEC inicialmente apenas ampliaria o período da licença-maternidade nos casos de bebês prematuros. No entanto, uma alteração minúscula retirou o direito, duramente conquistado, ao aborto para vítimas de estupro, gestantes que correm risco de vida ou cujos fetos são diagnosticados com anencefalia.
Homérico não é somente o apelido da proposta de emenda, mas é também a luta das mulheres por direitos reprodutivos em um país que as violenta. As modificações na PEC fizeram explodir manifestações por todo o Brasil, nas cinco regiões. Em Belo Horizonte, as palavras de ordem eram claras: “Não teremos filhos de estupradores!”.
No dia 1º de dezembro, foram encaminhados documentos da União Brasileira de Mulheres e da Defensoria Pública da União, repudiando a decisão tomada pelos deputados no início de novembro. Os documentos lembram os deputados sobre os dados de estupros no Brasil (1 a cada 11 minutos), principal motivo de abortamento legal no país, além de o aborto ser a quinta maior causa de mortes de mulheres em território nacional.
A ideia de proteção da “vida desde a concepção” já havia sido posta em pauta por projetos de lei como o “Estatuto do Nasciturno” (PL 478/2007) e tem sido alvo de repúdio por parte de muitos coletivos femininos. Foto: Protesto contra o Estatuto do Nasciturno.
Hoje, apenas no estado do Rio de Janeiro, 42 mulheres respondem criminalmente por terem abortado, sozinhas ou com ajuda de terceiros. Foto: Mulheres protestam contra PEC 181 que pode criminalizar o aborto, na Avenida Paulista (Rovena Rosa/Agência Brasil/Agência Brasil).
Um levantamento feito pela Diretoria de Pesquisa e Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Rio de Janeiro revela que o perfil das mulheres criminalizadas pela legislação brasileira é de mães negras, empobrecidas e sem antecedentes criminais, muitas delas jovens. Foto: Reprodução – Defensoria Pública.
Embora uma mulher não possa engravidar sozinha, ainda cabe a ela a responsabilidade por um filho indesejado que é obrigada a cuidar e amar (ainda que seja fruto de um estupro) e, nesse debate, pouco ou nada se fala sobre a falta de responsabilidade dos homens que abandonam mulheres grávidas, que as obrigam a abortar ou que não dividem equitativamente o trabalho associado à criação de uma criança. Foto: Getty/Marie Claire.
O tema do aborto é de foro íntimo e, simultaneamente, problema de saúde pública. Passa pelo controle do próprio corpo, pelas decisões em torno da própria vida, mas também por um contexto em que, no Brasil, muitas mulheres são vítimas de violência sexual. Foto: Mulher protesta contra projeto que proíbe aborto em qualquer caso (Cris Faga/Fox Press Photo/Estadão Conteúdo).
Há uma quantidade assustadora de mulheres situadas abaixo da linha de pobreza (sem assistência do Estado, sem condições básicas de sobrevivência e sem acesso a contracepção) que não podem criar filhos com dignidade. Foto: Protesto pela deiscrimianailização do aborto em São Paulo. (Eduardo Anizelli/Folhapress.)
Milhares de mulheres abortam todos os anos e as mortes têm um recorte de classe: a maioria ocorre após tentativas em casa ou em “clínicas” sem condições sanitárias, opções procuradas por quem não pode pagar cerca de 3.000 reais por um aborto mais seguro. Foto: Protesto no Dia Internacional da Mulher. (Agência Brasil).
Em 2016 pesquisadores da Universidade de Brasília e da Universidade Estadual do Piauí divulgaram a “Pesquisa Nacional de Aborto”, mostrando que 1 em cada 5 mulheres já havia realizado aos 40 anos pelo menos um aborto na vida. Assim, quase todos nós conhecemos alguém que já abortou, mesmo que não saibamos disso oficialmente. Foto: Protesto no Dia Internacional da Mulher. (Agência Brasil).
Pesquisas estimam que de 600 mil a 1 milhão de brasileiras recorrem a abortos ilegais anualmente e que uma mulher morre a cada 36h por conta de complicações do procedimento em território nacional. Foto: Protesto no Dia Internacional da Mulher. (Agência Brasil).
Dados de 2016 do Ministério da Saúde são ainda mais alarmantes: 4 mulheres morrem todos os dias em hospitais brasileiros por conta de complicações do aborto. Foto: À mesa, parte dos membros da comissão que aprovou, por 18 votos a um, a PEC 181/15. (Luis Macedo/Câmara dos Deputados).
A frase “vida sim, aborto não”, entoada em coro após a votação, considera um feto como vida humana, mas negligencia nitidamente todas as jovens vidas femininas perdidas anualmente por falta de empatia, de políticas públicas, de olhar para além da objetificação. Hoje, o sistema dificulta muito o acesso ao aborto legal, desde as informações até o encontro de equipes médicas especializadas (o número de equipamentos públicos para interrupção da gravidez diminuiu e hoje são apenas 33 no Brasil inteiro) e dispostas a cumprir a lei. Além da falta de atendimento adequado, há muitos casos de equipes médicas que violentam pacientes que necessitam de aborto ou que estão com complicações após o procedimento. A dor física, as sequelas e o psicológico abalado dessas mulheres encontram o olhar de julgamento onde deveriam ser tratadas e atendidas com respeito. Levando em conta o retrocesso da PEC, é ainda mais assustador pensar que, segundo a advogada Marina Ganzarolli, são estimados 500.000 estupros por ano no Brasil (70% contra menores de 17 anos, 50% contra menores de 13 anos): como obrigaremos uma criança de 13 anos a ter um filho de seu pai ou familiar estuprador?
O próximo capítulo dessa série de absurdos é a votação da PEC no plenário, cuja aprovação depende de pelo menos 308 votos favoráveis. O número parece grande. Mas, com um legislativo conservador, eminentemente masculino e machista, já imaginamos o provável (e desumano) resultado.