Análise | Gênero e sexualidade Movimentos sociais e ativismo

Miss Prostituta 2013

A realização do II concurso Miss Prostituta 2013, em Belo Horizonte, no último dia 28 de setembro, não chegou a ser um acontecimento. Ele não “irrompeu na normalidade do cotidiano de forma a provocar sua desorganização e abrir novos campos de sentido”. Não fez falar, não suscitou narrativas. No máximo, provocou umas poucas notas jornalísticas, foi estampado em alguns sites (entre eles, alguns internacionais).

No entanto, podemos dizer que foi um “quase-acontecimento” – tinha a potencialidade para sê-lo, ao se colocar na contra-mão de alguns parâmetros fortemente legitimados. O primeiro deles é assumir o título “prostituta”. Não se chamou “garota de programa”, sua versão fashion, nem “profissional do sexo”, nomeação politicamente correta. A nomeação Prostituta não contorna nem contorce o sentido mais direto do papel, e faz dele (do nome maldito) motivo de orgulho. Estratégia de legitimação, mas também de provocação.

O concurso ocorre no mesmo dia e cidade da realização do concurso Miss Brasil 2013 (este, em sua 59ª edição). Ambos se realizaram em dois shopping centers de Belo Horizonte: o Miss Brasil, já longe de seus anos de glamour, em um shopping de classe média; o miss Prostituta em um shopping popular no centro da cidade, em frente à rodoviária. Entre os dois concursos, no entanto, há uma forte distinção; já não tanto entre “garotas de família” e “mulheres perdidas (a relação já não se coloca mais nesses termos), mas com relação ao próprio padrão estético. O Miss Brasil permanece sendo um concurso de beldades dentro do padrão de beleza convencional, conjugando juventude, corpo magro e escultural, rosto de traços finos e harmoniosos, cabelos sedosos e bem tratados.

As características das nove candidatas a Miss Prostituta foram muito distintas: idade, entre 18 e 50 anos (afrontando claramente o quesito juventude); peso, sendo algumas muito magras (e sem curvas), outras gordas (com celulite, estômago proeminente e outros agregados de gordura). Se o conjunto das candidatas do Miss Brasil se encaixa bem no que consensualmente é tomado como uma mulher bonita, o mesmo não pode ser dito quanto às candidatas do Miss Prostituta. Esta últimas não se enquadram – e não seriam aprovadas – no tradicional concurso de beleza nacional.

O concurso, organizado pela Aprosmig (Associação das Prostitutas de Minas Gerais) fez parte de uma evento maior (II Festival Dia Sem Preconceito, que incluiu ainda o concurso de Miss Pantera Transex 2013), e foi apresentado por Elke Maravilha, “madrinha das prostitutas”. Fala da Elke: “não tenho nenhum preconceito contra quem vende o corpo, tenho com quem vende a alma”. O júri foi composto por artistas locais, representantes de associações e organizações não-governamentais. O público (em torno de umas 300 pessoas) incluiu frequentadores do shopping e possíveis clientes, além de um número significativo de jovens universitários apoiadores de movimentos e manifestações populares (em alguns momentos foram gritadas palavras de ordem – entre elas, “não vai ter Copa”).

As candidatas fizeram três apresentações, vestindo short e camiseta do shopping, roupa íntima e traje de gala (este, igual para todos – um vestido longo, rosa forte, de alça e com uma flor abaixo do busto). O desfile não obedeceu aos parâmetros do Miss Brasil nem dos desfiles de moda; com maior ou menor graça e desenvoltura, elas apresentaram uma performance bastante erotizada.

Houve uma premiação para Miss Simpatia, Miss Fotogênica e Elegância, e a indicação das três finalistas – terceiro, segundo e primeiro lugares. A vencedora chama-se Marcelina Gomes Teixeira, ou Camila (nome profissional).  Todos os sites que trataram do tema repetiram o mesmo currículo: tem 18 anos, seis meses de profissão, veio do interior e mora com a avó. Não tem música preferida, não tem hábito de leitura nem assiste filmes. Terminou o segundo grau, e pretende estudar enfermagem.

Fisicamente podemos dizer que ela está mais para gordinha; tem cintura grossa, não é alta, tem um rosto bonito, quase de menina, com certo ar de ingenuidade, usa aparelho ortodôntico. Foge aos estereótipos tanto da miss como da prostituta. A segunda colocada é mais velha (talvez em torno de 40 anos), magra, e muito envolvida no trabalho da Associação; a terceira é alta, tem um corpo mais exuberante e uma performance sedutora  (poses, olhares).

Este concurso, de âmbito local e público limitado, poderia ser sido um acontecimento; essa categoria, historicamente relegada à sombra, teve um movimento de ousadia ao se lançar à visibilidade e pretender o prestígio de uma coroação. Instaura uma ruptura, ao desafiar padrões estéticos hegemônicos e desfilar com orgulho mulheres que não são jovens e não são malhadas e esculturais.

Porém não chegou a sê-lo. Sua circulação foi limitada, e não ultrapassou muito a fronteira dos iguais, ou de grupos já sensibilizados pela diferença. A cobertura jornalística estava desprovida de referências para narrar essa ocorrência – e não conseguiu criar outro enquadramento senão aquele dos concursos de miss Brasil (as perguntas à candidata se limitaram a um repertório básico: livro de cabeceira, planos para o futuro).

Não é difícil identificar a pobreza do tratamento dado ao evento. Devemos nos perguntar, no entanto, por quais caminhos e com quais instrumentos poderíamos fazer falar este acontecimento; de que maneira perceber sentidos e horizontes outros, para além dos convencionais, que ele – situando-se fora das convenções – estaria apontando.

Foto: Mídia NINJA

Vera V. França
Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG
e coordenadora do Gris/UFMG

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O que mais me chama a atenção no concurso Miss Prostituta 2013 é o perfil da vencedora, a mulher eleita como síntese do esforço político e logístico do evento. Mesmo que seja forte a distinção no padrão estético dos dois concursos, e a distinção entre “garotas de família” e “mulheres perdidas” esteja menos aparente, acredito que esta última ainda forneça os parâmetros simbólicos do concurso. A moeda corrente em cada um desses campos simbólicos parece distinta. Enquanto na lógica-família os atributos valorizados são dotes físicos e polidez, na lógica-perdida, o valor da juventude e do tempo de prática parece sobrepor qualquer atributo físico específico. A virgem sempre custa mais caro. O fato é que o evento, com a intenção de “desafiar padrões estéticos hegemônicos”, parece contraditório quando elege uma menina de “18 anos, seis meses de profissão”. Tais características reiteram a lógica preconceituosa que se quer combater. Uma fuga para o mesmo lugar. Acredito que tanto o silêncio negligente das mídias quanto o perfil da vencedora do concurso evidenciam algumas das complexidades que parecem insuperáveis no caminho da transformação social.

Adriana Braga
Professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da PUC-Rio
Tem participado das reuniões do Gris em virtude do pós-doutoramento que está realizando na UFMG



Comentários

  1. […] a definição de acontecimento – citada por Vera França em outra análise do GRISLAB como algo que “irrompeu na normalidade do cotidiano de forma a provocar sua desorganização e […]

  2. Terezinha Silva disse:

    Talvez este acontecimento nos fale do valor da autenticidade, que parece adquirir novos contornos no contexto contemporâneo. Parte do que antes se dizia, se assumia ou ficava apenas em espaços mais restritos ou do domínio privado ganha, atualmente, esta visibilidade e dimensão pública, fazendo-nos (re)pensar, questionar, enfim, problematizar padrões e comportamentos vigentes, tidos como naturais e os únicos possíveis. Assumir-se, revelar-se, mostrar-se ou mesmo exibir-se pode ter, em acontecimentos deste tipo, um potencial político.

  3. Eduarda Rodrigues disse:

    Muito bacana a análise. A Mídia Ninja fez a cobertura dos bastidores do evento e as fotos estão no link: http://www.flickr.com/photos/midianinja/sets/72157636000169296/with/9993833394/

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