Frequentemente, nas redes sociais digitais, deslizes de figuras públicas são colocados em evidência e acarretam um “cancelamento” por seus públicos. Sintoma das interações online ou valores em conflito?
Anitta se recusou a posicionar politicamente? Cancelada. Nego do Borel fez comentários transfóbicos? Cancelado. David Miranda tirou uma foto com o Alexandre Frota? Também cancelado. Fernanda Gentil disse ter respeito por racistas e LGBTfóbicos? Boicote já. Raul Seixas delatou Paulo Coelho para os agentes da ditadura militar? Hora de rever seu status de ícone.
Apesar de parecer um termo acadêmico, a “cultura do cancelamento”, ou cancel culture, é uma realidade que tomou as mídias sociais nos últimos tempos. Jornalistas e pesquisadores vêm se debruçando sobre esse tipo de ação coletiva, que pode ser resumida como um boicote a uma determinada figura pública (como um político ou uma celebridade) que tenha feito ou dito algo que foge a um determinado padrão moral. Os públicos mobilizados dissecam essas ações nas redes sociais digitais e exigem uma reparação de danos. As mobilizações podem ser orientadas por hashtags específicas e, geralmente, começam no Twitter; viram trending topics, repercutem nos media, reafirmam valores e condenam outros. A lista de “cancelados” é numerosa, as razões também. Celebridades ao redor do mundo chamam o movimento de “falso ativismo” e até de “ditadura”.
A cultura do cancelamento expõe uma certa dissonância entre valores desejados e valores apreendidos na relação célebres-públicos. Com a exposição cada vez maior da vida cotidiana na Internet, tornou-se mais fácil detectar, julgar e condenar deslizes dos “olimpianos”, expondo suas fraturas e imperfeições. Os públicos, múltiplos e ativos, exerceriam, então, um certo “tribunal” em sua mobilização, que visa uma punição de tal conduta, seja através de boicotes ou da desmoralização coletiva de determinada figura pública. Assim, fotos e tweets antigos que contêm discursos LGBTfóbicos e/ou racistas são recuperados e se transformam numa afetação coletiva online; ações no presente também, como a isenção frente a questões políticas ou injustiças sociais. Enquanto julgam os célebres, reforçam valores coletivos desejáveis e “cancelam” condutas impróprias; ao mesmo tempo, fixam uma moralidade onde há pouco espaço para o arrependimento e o perdão.
Qual é o impacto desse tipo de mobilização? Dependendo de sua intensidade (e também do célebre), ela pode resultar em prejuízos materiais para a figura pública (como no caso MC Gui e outros internacionais). Em outros, pouco acontece: famosos e anônimos seguem suas vidas, mas algumas marcas ficam.
Enquanto a cultura de cancelamento demonstra um ostensivo policiamento digital das ações dos famosos, ela também é o reflexo de acontecimentos como a campanha #MeToo, que desestabilizou o eixo de poder entre celebridades e seus públicos. Se antes as ações privadas (e pouco calculadas) dos célebres se restringiam a poucas pessoas, com a Internet elas têm o potencial de afetar grandes coletividades. E se boicotes massivos eram difíceis de articular no passado, hoje eles estão ao alcance de um tweet.
Pedro Paixão, Graduando em Jornalismo pela UFMG
Fernanda Medeiros, Doutoranda em Comunicação pela UFMG