Os garis do Rio de Janeiro foram às ruas, em pleno carnaval, para pedir melhorias salariais. A pesquisadora do Gris, Laura Guimarães, aproveita o acontecimento para refletir sobre o fazer político das minorias, o aproveitamento tático das brechas do carnaval pelos garis e sua reverberação nas diversas mídias.
“Nunca houve humanidade, agora é que está havendo. Estamos fazendo os ensaios do que será a humanidade.”
Milton Santos
No primeiro dia de março, o sábado dos festejos de Momo, os garis do Rio de Janeiro entraram em greve, reivindicando melhores condições de trabalho e um aumento muito maior do que aquele de 9% aprovado pelo seu sindicato em acordo com a prefeitura. Descontente, esse grupo de pessoas cujo trabalho é ao mesmo tempo imprescindível e invisível, começa a ter grande visibilidade. É um grupo formado por gente pobre, que em sua maioria mora em favelas e contribui para que a cidade se mantenha maravilhosa para moradores e turistas.
Essas pessoas – as fotos comprovam – fazem parte de um estrato da população que descende de africanos e africanas que foram escravizados/as e forçados/as a trabalhar duro por pouco ou nada. A antropóloga Lilia Schwarcz conta que um castigo infligido aos escravizados no Brasil era chamado quebra-negro: depois de passar por isso, o negro devia sempre olhar pro chão quando perto de alguma autoridade. Essa e outras violências não impediram a agência e a resistência de pessoas escravizadas e de ex-escravo/as ao longo da história do Brasil, que contrariam a ideia do senso comum de um povo passivo e conformado.
Prefeito e sindicato não esperavam a resistência organizada, criativa e firme que veio dos garis. A Rede Globo e os principais jornais impressos ouviram e reproduziram as falas anti-grevistas que consideravam a greve como um ato de poucos dissidentes, “um motim”, segundo Eduardo Paes. No Twitter e no Facebook, as pessoas compartilhavam dados que comparavam o tempo desigual concedido a cada um dos lados da disputa. Com Michel de Certeau, entendemos a ação desses sujeitos como estratégias do forte, que domina os lugares de poder: a grande mídia, a polícia e até o sindicato dos garis.
A articulação, a adesão maciça à greve e as táticas de visibilidade dos garis – o lado fraco, que se utiliza das astúcias – conseguiram virar o jogo. Aproveitando-se da midiatização intensa da cidade no carnaval, numa mistura de protesto e festa, essas pessoas de uniforme laranja tomaram as ruas com música percutida nas lixeiras, em blocos que ganharam a simpatia da população.
Eles fizeram política, na acepção que Rancière confere ao termo, política que “(…) rompe a evidência sensível da ordem ‘natural’ que destina os indivíduos e os grupos ao comando ou à obediência, à vida pública ou à vida privada (…)”. Há uma divisão valorativa entre quem faz o trabalho que não espera e quem pode contemplar, refletir e tomar o seu tempo com um trabalho intelectual que pode esperar. A política começa então “(…) quando seres destinados a permanecer no espaço invisível do trabalho que não deixa tempo para fazer outra coisa tomam o tempo que não têm para afirmar-se coparticipantes de um mundo comum, para mostrar o que não se via, ou fazer ouvir como palavra a discutir o comum aquilo que era ouvido apenas como ruído dos corpos.”
Os garis, que fazem o trabalho diário e cotidiano que não pode esperar, mostraram seu poder de parar. Assim como Bartleby, o escrivão esquisito de Melville, cruzaram os braços, acharam melhor não fazer e esperar o que a prefeitura tinha a lhes oferecer. Para Rancière, as instâncias institucionais estabelecidas, o sistema partidário, o que está na esfera do poder não constitui política, e sim polícia. O sindicato faria então parte dessa polícia nomeada pelo autor.
Se, como diz Bakhtin, a carnavalização tem a ver com a inversão de lugares e hierarquias, nesse Carnaval tivemos um pouco disso. Apesar da desqualificação da greve por grande parte dos veículos de comunicação, das ameaças de demissão e mesmo da presença ostensiva e ofensiva da polícia junto aos caminhões de lixo, os trabalhadores conseguiram se fazer ouvir.
As interações estabelecidas nos sites de redes sociais foram fundamentais para que esse movimento se organizasse e tivesse apoio da população. No Twitter e no Facebook, internautas postaram fotografias e charges solidárias aos grevistas. A imprensa chamada alternativa publicou textos que mostravam visões diversas do impasse. De dentro de assembleias e passeatas, os garis, apoiadores e curiosos compartilharam imagens que em muito se diferenciam das representações que vemos nas páginas dos jornais. Em vez de garis olhando pra baixo e varrendo, apenas cuidando do seu trabalho que não pode esperar, esses homens e mulheres foram retratados de frente, ou mesmo de baixo para cima, orgulhosos, corajosos, organizados, certos de seus direitos e da importância de seu trabalho.
Oito dias depois do início da greve, ao fim das negociações, o resultado: aumento de cerca de 37% no salário e benefícios. No mesmo dia, os garis voltaram ao trabalho, recolhendo toneladas de lixo. Todo Carnaval tem seu fim e a vida volta ao “normal”: as desigualdades se mantêm, a grande mídia segue apoiando os mais poderosos. Mas a festa-protesto dos garis fica gravada como acontecimento: o Carnaval em que fracos, se utilizando de táticas midiáticas, astuciosamente conseguiram ser vistos, ouvidos e atendidos. Se estivesse vivo, Milton Santos, neto de pessoas escravizadas, teria gostado de ver esse belo ensaio de humanidade.
Referências:
BARROS, Diana L. P. Dialogismo, polifonia e enunciação. In: BARROS, D. L. P. e FIORIN, J. L. Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Edusp, 2003.
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2005.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
Documentário “Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá”, de Silvio Tendler. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=-UUB5DW_mnM
Laura Guimarães Corrêa
Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG
Pesquisadora da Gris/UFMG
Em texto poético e muito bem articulado, Laura Guimarães nos revela a capacidade dos garis do Rio de Janeiro de produzirem cenas de dissenso. Tais cenas se constituem, segundo Rancière, quando ações de sujeitos que não eram, até então, contados como interlocutores, irrompem e provocam rupturas na unidade consensual daquilo que é dado e na evidência do visível para redesenhar a posição de imagens que formam o mundo comum já dado, questionando uma ordem discursiva dominante que apaga conflitos, diferenças e resistências. Nas cenas polêmicas de dissenso o real objeto do conflito político é justamente a existência de uma situação de fala, de “aparição” e dramatização públicas e o status dos participantes nessa situação. Uma greve pode não mudar uma conjuntura desigual e injusta, mas reconfigura a cena política a partir da experiência particular dos sujeitos que nela se envolvem, revelando midiaticamente sua heterogeneidade (garis-grevistas-resistentes-cidadãos), e endereçando ao público novos ordenamentos do visível e do dizível.
Por meio de uma forma de expressão que combina argumentos e performances estético-expressivas, os sujeitos podem experimentar a política nestas cenas enquanto experiência e acontecimento, uma vez que transformaram a partilha do sensível que diz que aqueles que trabalham com o lixo (e dele se tornam indissociáveis) não têm tempo nem capacidades ou habilidades para consagrar-se a práticas políticas, inventivas e resistentes.
Angela Marques
Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG
e pesquisadora do Gris/UFMG