Aconteceu em Palmas, Tocantins, na manhã do dia 11 de outubro de 2013. O corpo do professor Arione Pereira Leite (56 anos) foi encontrado em uma escola da capital tocantinense. Ele fora atingido por uma pedra na cabeça (de 15 centímetros de diâmetro, segundo a Polícia Militar) e morreu no local. O professor havia assumido a homossexualidade recentemente, e a polícia investiga a hipótese de o crime ter sido homofóbico.
Essa ocorrência não ganhou ampla visibilidade midiática; eu a vi noticiada no site Pragmatismo Político e procurei outras informações e abordagens, mas não encontrei – apenas reproduções do que já havia naquele site. Ora, por que, então, abordar um acontecimento tão “inexpressivo” em nosso laboratório de análise de acontecimentos? Porque, apesar de invisível para a grande imprensa, essa ocorrência é bastante expressiva da sociedade em que vivemos – e da intolerância que lhe é característica. Podemos situá-la ao lado de tantas outras ocorrências que dizem do preconceito em relação àqueles cuja orientação sexual é homoafetiva.
Segundo Henrique Ávila (presidente do Grupo Ipê Amarelo pela Livre Orientação Sexual), em Palmas, apenas em 2013, três homicídios teriam sido motivados por razões homofóbicas. Em Belo Horizonte, há poucas semanas, um grupo de homossexuais foi agredido verbal e fisicamente em uma pizzaria do bairro Ouro Preto – sem punições. De maior repercussão na grande mídia e nas redes sociais, em agosto, vimos grande parte da torcida do Corinthians se revoltar contra o jogador Emerson Sheik, que postou uma foto em uma rede social, em que ele dava um selinho em um amigo em uma tentativa de discutir (e combater) o preconceito contra os homossexuais. Com grande visibilidade pública, também podemos lembrar inúmeros posicionamentos e discursos homofóbicos dos deputados federais Marcos Feliciano e Jair Bolsonaro. Este último foi entrevistado pelo ativista e comediante inglês Stephen Fry para um documentário (Out there) acerca da homofobia no mundo, exibido atualmente pela BBC no Reino Unido. Disse que não existe homofobia no Brasil; associou as agressões aos homossexuais ao uso de drogas e à prostituição; e afirmou que “a sociedade brasileira não gosta dos homossexuais”.
Agressões verbais e físicas (incluindo homicídios) contra os homossexuais e também contra quem protesta, de alguma forma, contra a discriminação. O que essas ocorrências nos dizem da sociedade em que vivemos? Ou seja, se os acontecimentos são dotados de um poder hermenêutico, como discute Louis Quéré, o que tais ocorrências revelam do contexto social contemporâneo?
Vivemos em uma sociedade em que a heteronormatividade é dominante, o que acaba por impulsionar o preconceito e a discriminação em relação àqueles que não compartilham dessa orientação. A violência e a agressão verbais e físicas que atingem esses indivíduos – diferentemente do que sugere Bolsonaro no documentário citado acima – refletem, na verdade, a intolerância de inúmeros sujeitos em relação a um modo de vida que foge ao padrão heterossexual: se não é esse o meu modo de vida, não deve ser respeitado; se não é esse o meu modo de vida, por que não acabar com ele?
É nesse sentido que também podemos dizer que tais ocorrências exibem um forte individualismo em nossa sociedade: indivíduos muito centrados em si mesmos, em seus projetos particulares, sentem-se no direito de ofender, agredir e até mesmo matar aqueles que apresentam modos de agir e pensar diferentes dos seus. Isso pode construir individualismos de grupo, marcados por intolerância, autoritarismo e radicalismo, tal como discutido por Terry Eagleton, em A ideia de cultura.
A polícia ainda investiga se o homicídio do professor em Palmas foi impulsionado por homofobia. Independente do resultado das investigações, a simples possibilidade de que um sujeito possa ser assassinado em nosso país em virtude de sua orientação sexual já diz muito do contexto em que vivemos. E o quanto precisamos avançar rumo a uma sociedade não apenas mais tolerante em relação às diferenças, mas também mais compreensiva, mais respeitosa, menos autoritária e mais democrática em relação à diversidade de diferenças – de gênero, de raça, de classe.
Foto: Dermival Pereira / Rede TO
Paula Guimarães Simões
Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG
e pesquisadora do Gris/UFMG
No Irã as pessoas são condenadas a morrerem apedrejadas também por terem uma orientação sexual diferente daquela imposta pela crença religiosa. Lá, embora não concordemos com tal sentença, entendemos que existe uma outra cultura e valores morais extremamente rígidos baseados na religião. A morte desse professor é uma condenação pior do que a cometida contra os homossexuais no Irã, pois ele não teve direito nem sequer a um julgamento, sendo condenado à morte apenas por sentir atração por pessoas do mesmo sexo. Isso não é apenas intolerância, é ignorância, é um crime. A homofobia sim é uma doença.
Inscrito em um quadro de sentido de um crime possivelmente motivado por homofobia – conforme a hipótese inicial da polícia citada na análise de Paula Simões -, a ocorrência envolvendo a morte brutal do professor Arione Pereira Leite é, em seguida, situada em um outro enquadramento: o de um crime por motivo banal ou passional. Como um acontecimento ainda em curso, surge assim uma outra interpretação para o ocorrido, em que a homofobia já não aparece (ao menos não explicitamente) como a motivação para o assassinato. Um garoto de programa com quem o professor Arione vinha se relacionando assume a autoria do crime. Conforme os relatos policial e jornalístico, teria matado-o após discussão “motivada por dinheiro ou ciúmes” e porque o professor teria “negado ir até um lanche na Capital” (Palmas/TO).
Independente deste movimento de quadros para explicar o acontecimento, o que ocorreu é mesmo revelador, como indica a análise de Paula Simões, da intolerância e individualismo que marcam nosso tempo, materializados nestas ocorrências cotidianas de violência e desrespeito ao outro e de banalização da vida. Importante, talvez, é pensar a recepção pública de acontecimentos como este: uma possível banalização desses casos pela própria imprensa, que se limita a um rápido registro, e em que medida eles afetam os públicos a ponto de desencadear uma ação coletiva.
Terezinha Silva
Professora Visitante do Departamento de Comunicação Social a UFMG, pesquisadora do GRIS/UFMG