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Dois anos do crime da Samarco: primazia da economia, esquecimento dos povos indígenas

Após dois anos do rompimento da barragem da Samarco, e quando as primeiras licenças ambientais para retomada da produção são concedidas, questões distintas costuram o mesmo acontecimento. Por um lado, está o forte apelo da comunidade de MG e ES pelo retorno das atividades da mineradora, visando à recuperação dos postos de trabalho. Diferente situação encontram os povos indígenas, com destaque para a tribo Krenak, cujos danos provocados pela contaminação do Rio Doce são praticamente irreversíveis.

Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo.

Passados dois anos do maior crime ambiental da história do país, a ferida provocada pela empresa Samarco continua aberta. No apagar das luzes de 2017, o Conselho de Política Ambiental de Minas Gerais concedeu as primeiras licenças ambientais para a retomada das atividades da mineradora. As operações estavam paralisadas desde o dia 5 de novembro de 2015, quando o rompimento da barragem de rejeitos matou 19 pessoas, arrasou distritos inteiros em Minas e comprometeu todo o curso do Rio Doce até sua foz no Espírito Santo.

O apelo popular pela volta da Samarco foi a tônica das audiências públicas do processo licitatório ocorridas na última semana. Moradores e autoridades municipais de Mariana (MG) e região tiveram o apoio de capixabas do sul do Espírito Santo (onde a Samarco possui planta industrial, além do porto) nos pedidos pela “volta dos empregos” e “para seguir em frente”. Entre as mais de 40 manifestações da audiência, ocorrida em 8 de dezembro, apenas três se posicionaram contra a concessão da licença.

Juntamente como o debate sobre a retomada ou não das atividades, também ganharam destaque midiático, ao longo destes dois anos, os prejuízos nas zonas urbanas, as demissões de empregados da Samarco e terceirizados, os pequenos negócios afetados, as indenizações negociadas, bem como o fornecimento de água potável para moradores. No entanto, não se falou, na mesma proporção, sobre a situação dos povos indígenas localizados ao longo do Rio Doce – hoje envenenado pelos rejeitos da mineradora. Eles também não fazem parte da população ouvida nos processos de licenciamento ambiental, já que estão a algumas centenas de quilômetros das minas de extração de minério – mas não protegidos dos impactos da atividade.

É sabido que alguns Krenaks, instalados na região de Resplendor (MG), à margem do rio, ganharam novas residências, indenizações e água própria para o consumo, por meio de ações da sociedade civil e da Fundação Renova – braço da própria Samarco e de suas controladoras Vale e BHP, criada para mediar o diálogo com os atingidos. Semelhantes atos paliativos ocorreram junto aos povos Tupiniquim e Guarani (localizados no ES). No entanto, a lógica de reparo do homem branco não é a mesma do índio. Para os Krenaks, por exemplo, o Rio Doce não é apenas uma fonte de subsistência, mas representa todo um modo de vida. Na cultura Krenak, o Rio não é somente o Doce, mas sim Watu (ou Uatu), um ente sagrado que costura toda uma forma de sociabilidade do povo secular.

Sem o Watu, os Krenaks perderam um elemento considerado intocável e responsável por afastar o mal. As plantas mortas às margens enlameadas prejudicaram a tradição de tratar enfermidades com ervas medicinais. A tribo, composta por sete aldeias, foi privada da noção de ecossistema passada de geração em geração e que, sem as águas do Doce, perde o sentido histórico, cultural e religioso. Após matar, torturar e escravizar os índios durante séculos e expulsá-los de áreas para atender interesses do capital, o homem branco agora parece ter dizimado até mesmo a sacralidade da natureza e conseguiu também silenciar o canto do Watu.

Fiorenza Carnielli
Doutoranda em Comunicação e Informação (UFRGS) e Professora da Universidade de Caxias do Sul

Raquel Dornelas
Doutoranda em Comunicação (UERJ) e Professora da Universidade Vila Velha



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